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Ilustração: Felipe Lima| Foto:

No jornal O Estado de S. Paulo do dia 3 de dezembro de 1879, a Casa A. L. Garraux anunciava um grande sortimento de burras de ferro importadas da Europa: “Estas burras podem, por suas formas elegantes e suas dimensões, ser colocadas em qualquer lugar, quer na sala de visita, de jantar ou na loja; são munidas de cavilha férrea que permite de as selar n’uma parede”.

Recomendadas para banqueiros, negociantes, administrações e ourives, as burras “de ferro incombustível Bauche” (antes eram de madeira) já tinham sido testadas um ano antes na Exposição Universal de Paris: colocaram 50 mil francos em títulos e notas bancárias dentro de uma burra que foi posta em uma fogueira de madeira de carvalho e querosene. A burra ficou vermelha no braseiro, e mesmo assim as notas teriam sido retiradas sem dano algum.

Foi a partir de 1879 – podemos imaginar – que os inventivos brasileiros começaram a desenvolver suas próprias artimanhas para desvendar os segredos das burras do governo. E tanto se especializaram nas manhas do ofício que hoje os cofres estatais são facilmente arrombados com meia dúzia de assinaturas. Mas houve um tempo em que as burras – palavra latina que designava tecidos grossos e resistentes para guardar valores no Império Romano – rendiam muita mão de obra.

Como no caso do “Assalto ao mulo pagador”, episódio acontecido depois que o governo imperial começou a construção, em 1890, da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, com a intenção de fixar imigrantes nas terras devolutas dos campos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Nos 20 anos da construção da Estrada de Ferro Norte-Sul, uma série de escândalos administrativos e financeiros gerou uma significativa leitura da sigla EFSPRG: “Estrada Feita Só Para Roubar o Governo”.

A construção do trecho catarinense da estrada de ferro sacudiu os hábitos e os costumes do Brasil Meridional, com a presença de 8 mil trabalhadores braçais, oriundos do Rio de Janeiro, de Pernambuco, da Bahia, de São Paulo, recrutados inclusive em portos e em prisões. Na região corria muito dinheiro, inclusive cédulas de 500 mil réis até então desconhecidas pelos moradores das barrancas do Rio do Peixe. Com dinheiro farto e descanso semanal (o que não ocorria no tempo dos escravos) apareceram as bebedeiras, a prostituição e os assaltos. As noites nos acampamentos eram de farras desenfreadas. O pior acontecia nos primeiros dias de pagamento, quando eram frequentes os roubos e os assassinatos, com os cadáveres boiando em águas barrentas, ou sepultados embaixo dos trilhos.

Como conta o falecido historiador Nílson Thomé, aquela estrada de ferro foi construída pelo sistema de “empreitada”, hoje conhecido como “terceirização”, quando um certo Zeca Vacariano contratou dois trechos de trilhos. Ao terminar a obra – sem botar em dia os salários em atraso –, o empreiteiro vigarista associou-se, então, a outros comparsas e armou um assalto aos funcionários da EFSPRG que, a cada fim de mês, percorriam os trechos em construção para efetuar os pagamentos dos trabalhadores. Escondidos na floresta, Winchester em punho, os membros da quadrilha esperaram a passagem do mulo pagador.

Na tocaia, os assaltantes mataram dois, feriram o mulo pagador e levaram 360 contos. Um dinheiro sem tamanho. Mais de 15% da arrecadação do Tesouro do Estado de Santa Catarina, em 1910. Tropas federais e estaduais, bem como o corpo de segurança da empresa construtora, vasculharam a região para caçar Zeca Vacariano e os 360 contos. Não recuperam um tostão furado. O golpe gerou um atraso de meses na conclusão da estrada, bem assim como acontece hoje.

Zeca Vacariano – certamente com a conivência de poderosos comparsas – escafedeu-se nebulosamente. Alguns dizem que abriu uma grande empreiteira de obras públicas em São Paulo. Outros asseguram que o Vacariano foi criar gado para o abate no sertão de Goiás e, com 300 contos em suas próprias burras, botou seus mulos na sombra.

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