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Lula condecorando Alexandre de Moraes com a Ordem do Rio Branco.
Lula condecorando Alexandre de Moraes com a Ordem do Rio Branco.| Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

“Teria que ter inquérito para saber o que se passou. As pessoas só eram soltas, liberadas, depois de confessarem e fazerem acordo de leniência. Isto é uma vergonha! E nós não podemos ter este tipo de ônus. Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de tortura usando o poder do Estado. É disso que se trata”, esbravejou o ministro Gilmar Mendes durante uma sessão de julgamento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em 09 de maio deste ano.

Naquela mesma sessão de julgamento, o ministro Dias Toffoli também engrossou o coro de críticas à Lava Jato. “Houve aqui um tipo de coação para autoincriminação, ao se barganhar prisão com cautelares. O Telegram demonstrou que o que havia ali era, sem dúvida nenhuma, uma indústria de condenações a qualquer custo, a qualquer preço, um pau de arara do século XXI”, disse Toffoli, antecipando a mesma ladainha que usaria, meses depois, na infame e vergonhosa decisão que anulou as provas do acordo de leniência da Odebrecht - sem apontar um único caso que confirmaria sua grave acusação.

Enquanto Gilmar e Toffoli atacavam a operação Lava Jato em rede nacional, a poucos metros dali, no prédio da Procuradoria-Geral da República (PGR), algo ainda mais surpreendente acontecia. Enquanto os ricos e poderosos eram blindados e protegidos pelo STF, dando amplas oportunidades para que Gilmar Mendes se escandalizasse em público contra as injustiças cometidas contra os pobres políticos e empresários pegos na Lava Jato, cidadãos comuns, trabalhadores, pobres e sem poder algum eram denunciados em massa pela PGR pelos atos do 8 de janeiro.

Cleriston Pereira da Cunha era um deles. Preso desde o dia 8 de janeiro, Cleriston estava no Complexo Penitenciário da Papuda, depois de ter sido capturado pela Polícia Legislativa no Senado. Poucas horas antes de ser preso, Cleriston estava em seu mercadinho na região metropolitana do Distrito Federal, trabalhando com sua esposa. As imagens das câmeras de segurança do mercadinho de Cleriston não mentem - ao contrário das câmeras do Ministério da Justiça de Flávio Dino, que nunca tiveram a oportunidade de sequer contar a sua verdade sobre o que realmente aconteceu no dia 8 de janeiro.

Cleriston, ao ser preso em flagrante, não tinha nem percebido sua real situação. Sim, é isso mesmo: Cleriston nem sabia que estava sendo preso. Durante uma das audiências feita com Cleriston no fim de julho, ele confirmou que não chegou nem a receber voz de prisão:

“Na verdade não teve nem voz de prisão, na verdade eles chegaram tranquilo, falaram assim ó, vamo sair daqui pra um local seguro, né, mas na verdade, quando chegou embaixo onde fica tipo a garagem, eles pediram o celular, eu falei tá aqui meu celular, inclusive eu entreguei meu celular e passei a senha do meu celular também, né. E só foi isso. Aí, logo em seguida eu fiquei sabendo que estava preso. Eu falei pro policial, o senhor que ia nos conduzir para um local seguro, mas nós estamos presos? É, agora vocês não podem sair daqui mais. E inclusive estamos aqui até agora.”

As palavras do policial foram proféticas: Cleriston jamais sairia dali vivo. Cleriston não imaginava que, quando saísse, não seria para encontrar sua esposa e duas filhas e lhes dar um abraço apertado. O que sairia seria apenas seu corpo, direto para o IML, para a realização de necropsia. Se a morte fosse imprevisível, inevitável, não teria causado revolta. Contudo, foi um agravamento das injustiças praticadas contra Cleverson e outros tantos que seguem presos sem os requisitos legais por ordem do STF. 

Vamos voltar para os momentos em que Cleriston estava preso. Logo depois da prisão, em fevereiro, o advogado Bruno Azevedo de Souza solicitou sua prisão domiciliar, alegando que Cleriston sofria com as sequelas da Covid-19, que em 2022 haviam causado a internação de Cleriston por 33 dias com problemas cardíacos. O pedido do advogado foi acompanhado por laudo médico.

Em abril, quando surgiram as primeiras denúncias em lote da PGR, sem provas individualizadas do que cada um fez, Cleriston foi denunciado por cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado. Não havia uma única evidência de qualquer coisa errada que tivesse feito, num ambiente monitorado por diversas câmeras, mas Cleriston passou a ser tratado como inimigo do Estado.

Um dos princípios mais sagrados do direito penal, o da responsabilidade pessoal do agente, dita que qualquer pessoa responde apenas pelo que fez. Não se pode transferir a responsabilidade de uma pessoa para a outra. Os advogados de Cleriston, em várias manifestações, afirmaram que não tiveram acesso a um único elemento de prova - seja documento, foto ou vídeo - que comprovasse qualquer das acusações contra Cleriston. 

Qualquer pessoa adulta, com o mínimo de bom senso e com as faculdades mentais intactas é capaz de questionar como alguém como Cleriston - um cidadão comum, trabalhador, pai de duas filhas - que minutos antes do início dos atos do 8 de janeiro estava trabalhando em um mercadinho de bairro, poderia, em alguma circunstância, desarmada, acompanhada de outros manifestantes desarmados, dar um golpe militar e derrubar o governo brasileiro. Além disso, sendo realista, não há nenhuma evidência de que ele queria dar um golpe de Estado. 

Os advogados de Cleriston, em várias manifestações, afirmaram que não tiveram acesso a um único elemento de prova - seja documento, foto ou vídeo - que comprovasse qualquer das acusações

Não estavam presentes, no caso, os requisitos e fundamentos para que Cleriston permanecesse preso. Dentre esses requisitos, está a exigência de indícios de autoria, que não foram coletados apesar, mais uma vez, das muitas câmeras de vigilância do local. Outro requisito é a prova de que a liberdade da pessoa, no caso um cidadão trabalhador sem antecedentes criminais, represente um perigo para a sociedade. Nossa Justiça solta pessoas com longas fichas criminais, para matarem inocentes poucas horas depois, como aconteceu nesta semana no Rio, mas manteve Cleriston preso.

Para além de não haver razões para prender, havia razões para soltar Cleriston, ainda que com medidas como uso de tornozeleira eletrônica. Ao longo de quase um ano, foram oito pedidos da defesa de Cleriston por sua soltura em razão de problemas de saúde. O mais forte deles, apresentado em maio, destacava todas as razões pelas quais Cleriston sequer poderia ser preso, mas além de tudo, alertava: “A segregação prisional poderá ser sentença de morte”. 

E foi sua sentença de morte: após ficar engavetado por nove meses, o pedido da defesa de Cleriston serviu apenas como triste prelúdio, culminando com a morte de Cleriston nesta segunda-feira (20), aos 46 anos. Morreu esperando uma soltura que nunca veio, 80 dias depois de a própria PGR dar um parecer favorável à sua saída da prisão, em 1º de setembro. O relator do processo de Cleriston era ninguém mais, ninguém menos, do que o ministro Alexandre de Moraes, relator universal de qualquer questão relevante do Brasil no STF.

Alguém poderia dizer que o que houve com Cleriston foi apenas uma tragédia, como ocorre o tempo inteiro no sistema prisional brasileiro, fruto de um “estado de coisas inconstitucional” nas palavras do STF. A maioria dos ministros da corte reconheceu que havia uma violação sistemática e massiva dos direitos dos presos e determinou que os governos estaduais e federal montem um plano para enfrentar os problemas do sistema prisional. Mas foi muito mais do que isso: a morte de Cleriston foi um reflexo do “estado de coisas inconstitucional” que existe hoje no próprio Supremo.

Há anos o ministro Alexandre de Moraes é o soldado destacado pelo Supremo para levar à cabo uma série de ilegalidades e abusos nos inquéritos e processos em curso no STF, que são objeto de denúncia diária tanto da direita, a maior vítima das ilegalidades, quanto por alguns poucos juristas e advogados preocupados com a situação do país que têm coragem de criticar o tribunal. Aqueles que criticavam a Lava Jato por supostos excessos jamais demonstrados silenciam diante dos abusos comprovados na mais alta corte do país.

Morreu esperando uma soltura que nunca veio, 80 dias depois de a própria PGR dar um parecer favorável à sua saída da prisão, em 1º de setembro

No parquinho de Moraes, advogados são impedidos de acessar os autos e as provas, não conseguem conversar ou ter contato com seus clientes presos, a própria imprensa é censurada - como ocorreu com a famosa matéria “O amigo do amigo do meu pai”, da Revista Crusoé - pedidos do Ministério Público, inclusive de arquivamento, são sumariamente ignorados, pessoas sem foro privilegiado são julgadas, e os delegados da Polícia Federal que pedem diligências e medidas cautelares são, muitas vezes, escolhidos a dedo pelo próprio Moraes.

O Supremo que falhou com Cleriston e sua família, que deixou de apreciar os pedidos de soltura e ignorou os apelos acerca da saúde debilitada de Cleriston, e que sentou no processo por mais de nove meses, é o mesmo Supremo que, em questão de horas, mobilizou a Polícia Federal para receber no aeroporto a família Mantovani assim que eles chegaram ao Brasil, vindos da Itália. É o mesmo Supremo que demonstrou uma agilidade fora do comum para ordenar busca e apreensão contra esta mesma família composta por pessoas sem foro privilegiado, e que hoje sofrem com o peso do aparato estatal inteiro em benefício pessoal de um único ministro, o mesmo Alexandre de Moraes. 

Se um juiz de primeira instância, um mero mortal, tivesse deixado de decidir um pedido de soltura de um preso com problemas graves de saúde, que já tinha parecer favorável do MP, no dia seguinte seria aberto um processo administrativo disciplinar contra ele pelo Conselho Nacional de Justiça. Para Moraes, não: no dia seguinte à morte de Cleriston, o Brasil inteiro viu o ministro ser condecorado pelo presidente Lula (que ignorou a morte de Cleriston) com a mais alta Ordem de Rio Branco, ao lado da ilustre companhia de Cristiano Zanin, Simone Tebet, Jorge Messias (o Bessias), Anielle Franco, Silvio Almeida, Janja e Lu Alckmin.

Já não basta o mal incomparável, puro e desavergonhado em curso no STF. Agora somos confrontados com uma realidade ainda pior: os poderosos não têm mais pudor de desfilar e pavonear sua crueldade e premiar sua própria sordidez. E o mal, sem oposição, espalha-se como fogo em palha seca, incendiando tudo e todos à sua frente. Martin Luther King sabia bem disso: “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”, dizia o pastor batista.

O advogado criminal americano e professor de Harvard Alan Dershowitz, famoso mundialmente pela defesa do jogador de futebol americano OJ Simpson diante da acusação de assassinato da ex-esposa de OJ, Nicole Brown Simpson, nos anos 90, é um democrata liberal que atraiu o ódio dos próprios democratas e da esquerda americana ao defender o ex-presidente Donald Trump das acusações feitas contra ele durante seu mandato.

Dershowitz tinha uma lógica jurídica simples, mas efetiva, que ele chamava de “Shoe on the other foot test”, ou “Teste do sapato no outro pé”, em tradução livre. Segundo Dershowitz ensinava, o que ocorreria se o “sapato” que os democratas estavam colocando no pé do então presidente Trump estivesse no pé de um presidente democrata? Em outras palavras: dados os mesmos fatos, os democratas acusariam e atacariam um presidente democrata, ou o defenderiam e o protegeriam dos ataques?

O teste de Dershowitz é uma exigência de coerência e de defesa dos princípios democráticos, constitucionais e republicanos a despeito da orientação política ou ideológica da pessoa sob julgamento. É um teste de justiça e de imparcialidade. Trago o ensinamento de Dershowitz porque ele é pertinente aqui: se alguns ministros do STF criticavam a Lava Jato e diziam que a operação fazia tortura quando efetuava prisões para obter delações (o que é uma mentira demonstrada por números), como eles vão chamar agora o caso de Cleriston, preso preventivamente de modo indevido pelo STF e que morreu na cadeia, mais de dois meses depois de parecer favorável de soltura da PGR?

E agora? Gilmar Mendes e Dias Toffoli vão criticar Alexandre de Moraes? Gilmar vai chamar Moraes de “pervertido” ou de “torturador”? Vai defender inquérito para apurar a conduta de Moraes, como fez com a Lava Jato? Toffoli dirá que Moraes conduz uma “indústria de condenações a qualquer custo, a qualquer preço” e que seu gabinete é “um pau de arara do século XXI”? O problema eram supostamente os métodos da Lava Jato, ou tudo se trata, na Suprema Corte, de quem são os alvos?

A resposta é evidente. Basta ver como o posicionamento do STF mudou conforme a Lava Jato passou a atingir mais e mais poderosos, aliados históricos de um número cada vez maior de ministros, ou até mesmo os próprios ministros. Para os donos do poder, a hipocrisia e o duplo padrão para amigos e inimigos, aliados e adversários, são preços pequenos a se pagar para seguirem sendo supremos e esmagando qualquer ameaça a seu poder.

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