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Deltan Dallagnol

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Justiça, política e fé

Julgamento do "golpe"

Por que as alegações da PGR contra Bolsonaro não param em pé

O procurador geral da República, Paulo Gonet. (Foto: Jose Cruz/Agência Brasil)

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As alegações finais da PGR são parte da guerra contra Bolsonaro. 

As alegações não comprovam sua tese central — a de que o 8 de janeiro foi a consumação de um golpe pelo qual são responsáveis os réus. Além disso, criminalizam a liberdade de expressão, fecham os olhos para plausibilidade da narrativa dos réus e são frágeis em termos de prova. 

Do ponto de vista técnico, não param em pé, como mostrarei em seguida. Não sustentam uma condenação. O padrão exigido em processo penal é o da prova para além de dúvida razoável — e o que há neste caso são fortes provas em contrário, dúvidas em excesso e uma série de impedimentos à condenação decorrentes do próprio direito penal democrático. 

Contudo, a PGR e o STF fecham os olhos para tudo isso. Por quê? A resposta é clara. Por uma questão de sobrevivência. Há uma guerra instalada e o STF precisa acabar com o bolsonarismo por uma questão de sobrevivência política dos ministros. 

Durante o governo Bolsonaro, houve uma escalada do conflito entre Bolsonaro e o tribunal, até um ponto em que o STF reabilitou Lula e interferiu nas eleições por meio de uma série de decisões, várias delas “criativas”, que restringiam a liberdade de expressão contra atores da direita. Era preciso “derrotar o bolsonarismo”. 

Só que o bolsonarismo não morreu. A sobrevivência e o fortalecimento políticos do bolsonarismo são a maior fonte de ameaça aos ministros, tanto de impeachment  como de responsabilização futura por seus abusos, que pode chegar a indenizações milionárias por seus excessos.

Há uma guerra instalada e o STF precisa acabar com o bolsonarismo por uma questão de sobrevivência política dos ministros

Assim, o STF deflagrou uma guerra contra Bolsonaro e o bolsonarismo. Nessa guerra, os fins justificam os meios. É por isso que o caso precisa ficar no Supremo, mesmo sem foro privilegiado. É por isso que pessoas foram presas por meses sem denúncia. É por isso que é preciso manter a delação de Mauro Cid, apesar das mentiras. É por isso que foram feitas tantas pescarias probatórias. É por isso que se censuram e calam os bolsonaristas.

O Direito se transformou num instrumento de poder, numa arma de guerra. Há um “lawfare”, uma “weaponization” da lei contra Bolsonaro e seus aliados. As alegações finais da PGR são pouco técnicas, subvertem conceitos básicos do direito e traçam um caminho perigoso para o Estado Democrático de Direito no Brasil — o mesmo que PGR e STF dizem defender. 

São mais um ataque dentro dessa guerra. A seguir, detalho grandes problemas das alegações finais da PGR contra Bolsonaro que tornam isso claro: o 8 de janeiro, a criminalização da liberdade de expressão e as suas fragilidades probatórias.

1) O 8 de janeiro

A PGR não consegue comprovar que o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe. Como não tem provas de sua principal tese, a PGR diz que o 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe porque o STF já o decidiu em ações de outros réus. A matéria teria “precluído”, ou seja, não poderia mais ser rediscutida. Esquece, porém, que nem Bolsonaro nem os demais acusados desta ação tiveram oportunidade de se defender, apresentar sua versão, provas e teses, naqueles julgamentos. É evidente que não há preclusão.

A preclusão é o atalho mais conveniente - e autoritário - para não confrontar os fortes argumentos em sentido contrário: Bolsonaro não estava mais no poder, não estava sequer no Brasil; os atos ocorreram em um dia de domingo, que as autoridades estavam todas fora de Brasília; os comandantes das Forças Armadas ou estavam fora de Brasília ou de férias; o comando das Forças tinha passado de mão; não havia armas ou tanques etc. 

Esses argumentos esvaziam a tese do golpe, que definha para, no máximo, incitação a golpe por manifestantes que buscavam a intervenção militar - crime que tem pena muito inferior: detenção de três a seis meses. Os crimes de tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático de Direito têm penas que variam entre quatro e doze anos. Na ânsia de prender Bolsonaro, reconhecer a realidade não é conveniente.

Além disso, a PGR não comprova o vínculo do 8 de janeiro com os réus. Em certo momento das alegações finais, a PGR admite que o evento "pode não ter sido o objetivo final do grupo, mas passou a ser desejado e incentivado". Desejar não é crime. Em relação ao suposto incentivo para as invasões e depredações, não há qualquer prova disso, muito menos em relação a Bolsonaro. 

A afirmação vaga de que “desejaram e incentivaram” parece uma confissão de que a instrução do processo não comprovou qualquer vínculo dos réus com os atos daquele dia. A PGR ainda culpa Bolsonaro por não “desestimular” seus apoiadores, o que não tem relevância penal, já que Bolsonaro não era mais presidente e, portanto, não exercia função de comando nem obrigação de garantir a ordem pública. Não há, no caso, responsabilidade penal por omissão.

Sem evidências que liguem Bolsonaro e os demais ao 8 de janeiro, não se pode responsabilizá-los por atos de terceiros. Em um Estado de Direito minimamente funcional, seria suficiente para absolvê-los, por ausência de violência ou grave ameaça que são exigidas pela lei para que existam os crimes de abolição violenta do Estado de Direito e de tentativa de golpe.

2) Criminalização da liberdade de expressão

Na denúncia e nas alegações finais, a PGR sustenta que Bolsonaro e seu entorno planejavam o golpe desde 2021, por meio de lives e discursos em que questionavam as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral. O argumento é espantoso, pois em 2021 Bolsonaro ainda era presidente — não poderia dar um golpe em si mesmo — e ninguém sabia quem seriam seus adversários ou quem venceria a eleição.

A PGR acusa Bolsonaro e outros de "dialogarem", "se reunirem", "consultarem", "defenderem", "alegarem" e “atacarem” instituições — ou seja, criminaliza condutas protegidas pela liberdade de expressão. Confunde propositalmente a defesa de ideias e opiniões, mesmo polêmicas, com ataques antidemocráticos e violência. Faz uma perigosa e indevida equiparação entre palavras e atos violentos, num ataque direto ao núcleo da liberdade de expressão.

A PGR também dá importância exagerada à minuta do golpe, que jamais foi assinada ou colocada em prática. Bolsonaro admitiu ter discutido com militares e ministros decretos de estado de defesa e de sítio — medidas constitucionais legítimas, mesmo que a finalidade cogitada (intervenção no TSE) não fosse lícita. Mas, ainda que o objetivo fosse ilícito, não houve crime porque nada foi executado. Tudo ficou no campo do debate, estudo, cogitação e preparação — fases que não são puníveis pelo direito penal democrático.

Além disso, cega por sua própria narrativa, a PGR fecha seus olhos para a versão alternativa dos réus, que é perfeitamente plausível. Afinal, Bolsonaro nunca confiou nas urnas eletrônicas, que critica desde antes de 2021. Em razão da escalada do conflito com o STF e o TSE, Bolsonaro acreditou sinceramente que houve fraudes nas urnas. Enquanto buscava evidências de fraudes, cogitou medidas excepcionais que pudessem ter amparo na Constituição. Não encontrando prova de fraude, fundamento constitucional ou apoio para as medidas, desiste, transfere o comando das Forças Armadas e ruma para os EUA.

Ainda de acordo com essa perspectiva, apoiadores de Bolsonaro, que tinham crenças parecidas com as dele, indignados com a eleição de Lula, com a interferência indevida do TSE nas eleições e com a reabilitação de um corrupto pelo STF, avançam sobre os prédios públicos no 8 de janeiro, promovendo vandalismo. Parte dessas pessoas tinha a expectativa de uma intervenção militar e devem responder por incitação e danos causados. 

Essa narrativa alternativa não só é legítima, mas é compatível com as provas e, no seu contexto, o discurso contra as urnas e instituições não passava de críticas legítimas, fossem ou não fundadas, fossem ou não equivocadas. Nesse contexto, minutas de decretos e reuniões eram atos de cogitação e estudo de alternativas, jamais de execução, que são impuníveis. 

Aliás, ainda que alguém argumente que há aí algum ato de execução dos crimes, eles são impuníveis diante do artigo 15 do Código Penal, que prevê a figura da desistência voluntária: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”. A aplicação da lei a um caso nunca foi tão clara. Por que a PGR e o STF não reconhecem?

3) Fragilidade probatória

Ao contrário do que dizem comentaristas governistas e pró-Supremo na imprensa militante e nas redes sociais, o caso da trama golpista não apresenta fartas provas de crimes, especialmente em relação a Jair Bolsonaro. Não há prova direta e incontestável de que ele tenha praticado qualquer ato concreto de tentativa de golpe ou de qualquer outro crime.

As alegações finais se apoiam, principalmente, em depoimentos de testemunhas e réus e nas mensagens de texto obtidas pela Polícia Federal (PF), que não demonstram a tese da acusação, quer em relação aos crimes, quer em relação à responsabilidade de Bolsonaro. 

As testemunhas, por exemplo, os comandantes das Forças Armadas, confirmaram reuniões com Bolsonaro em que teriam sido discutidas medidas como estado de defesa ou estado de sítio, mas nenhuma delas foi assinada ou executada. Isso não prova mais do que cogitações ou preparação, que não são puníveis.

O depoimento de Mauro Cid, com todos os seus problemas que sugerem falta de voluntariedade e sinceridade, foi usado seletivamente. Ele atestou, por exemplo, que os réus não planejaram ou apoiaram os atos de 8 de janeiro. A quebra desse vínculo faz cair por terra a tese da acusação, porque os crimes de golpe e abolição do Estado Democrático exigem violência ou grave ameaça, que só estão presentes naquela data. 

Nesse sentido, o depoimento de Mauro Cid oferece um dilema para a PGR. Se o depoimento de Cid tem força probatória, ele desmonta a acusação por destruir o vínculo dos réus com o 8 de janeiro. Por outro lado, se o depoimento de Cid não tem força probatória, isso também desmonta a acusação, que é largamente baseada no colaborador.

As mensagens, por sua vez, são truncadas e no máximo provam intenções, cogitações e planos, não crimes: elas mostram que havia militares favoráveis a uma ruptura institucional, mas indicam que tudo permaneceu no plano das vontades, cogitações e planejamentos. Nenhum plano foi executado, por qualquer razão que seja.

Da mesma forma, as provas nos autos não demonstram que Bolsonaro sabia, aprovava, orientava ou comandava os planos. A PGR presume que Bolsonaro sabia dos planos e era o líder supremo dos golpistas apenas por ser o suposto beneficiado de uma ruptura democrática. Isso, no entanto, é insuficiente para comprovar sua responsabilidade. 

Tanto é que havia mensagens de Cid em que afirmava que Bolsonaro teria que ser convencido a assinar um decreto. Isso mostra que Bolsonaro, na verdade, resistia à ideia do decreto, e que havia gente muito mais interessada em avançar os planos do que o próprio presidente. Mais uma vez: as provas de Cid são ou não confiáveis? Nesse caso, trata-se de mensagem apreendida em seus dispositivos eletrônicos antes da colaboração, à qual se deve dar todo crédito.

Por fim, Bolsonaro não expediu qualquer ordem, explícita ou implícita, para invasão de prédios públicos, não assinou decretos de estado de sítio ou exceção, não mobilizou tropas, não colocou tanques nas ruas, não ordenou a deposição de autoridades nem o fechamento do Congresso ou do STF. 

Pelo contrário, deixou o cargo ao final do mandato, entregou o comando das Forças Armadas ao governo de transição sem resistência — inclusive atendendo a um pedido do atual ministro da Defesa de Lula — e não incentivou publicamente os manifestantes em frente aos quartéis. Essas condutas são totalmente incompatíveis com as de alguém que desejaria dar um golpe de Estado.

Contudo, nada disso importa. É guerra.

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