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O Quixote encontra Mestre Pedro
| Foto:
Gustave Doré/Reprodução
Ilustração de Gustave Doré para a cena do “Mestre Pedro”.

Uma das genialidades do Quixote é como Cervantes consegue fazer você ler 1,5 mil páginas sem cansar. E boa parte do truque, creio, está na inventividade dele para gerar uma história depois da outra. Ele não se prende a detalhes desnecessários e em cinco ou seis páginas pode resumir toda uma cena que outro autor poderia prolongar demais. A própria cena dos moinhos de vento, tão famosa, não dura mais do que isso.

E durante os dois volumes os casos se seguem. E a imaginação nunca termina. Nem a de Cervantes, nem a de Quixote. Como fica claro numa das histórias mais famosas do segundo livro, a que fala sobre Mestre Pedro e seu teatro de bonecos.

Mestre Pedro já havia aparecido no primeiro livro com outro nome e numa situação bem diferente: era um presidiário que ia sendo amarrado a tantos outros. Quixote se apieda deles, como se fossem bons homens presos indevidamente, arma uma cena e os solta, achando que é um gesto típico de fidalgo e cavalheiro. Mas eram todos mesmo uns pilantras que pagam a Quixote e Sancho com fuga e bordoadas.

No segundo livro, o personagem está travestido de titereteiro e aparece numa das pousadas em que Quixote para no caminho para Barcelona. Primeiro, mostra a todos um macaco capaz de adivinhações. Depois, arma o seu retábulo e começa a contar uma história romântica sobre um cavaleiro que precisa salvar sua amada.

Gaifeiros, o cavaleiro, é apaixonado por Melisendra, filha de Carlos Magno. Mas ela foi feita refém pelos mouros. A cena começa com Gaifeiros num jogo e Carlos Magno, rei de França, exigindo que ele parta atrás da namorada. Ele vira herói e parte para salvá-la. Mestre Pedro conta a história cheia de detalhes para a plateia da pousada.

Mas, claro, com Quixote na plateia, nada dá certo. Ele se arrepia com as maldades dos mouros e parte para cima deles. Com a espada desembainhada, rasga e quebra as peças, os bonecos, o próprio retábulo, de um jeito que todos fogem, Pedro ruge por perder sua fonte de renda e até Sancho se assusta. Só depois, chamado à realidade, Quixote percebe que fez o que não devia.

A história toda, é uma espécie de resumo do próprio Quixote: a alucinação causada pela romantização excessiva de uma história que a torna quase real para alguém disposto a acreditar naquilo. Cervantes faz de Quixote uma vítima desses romances água com açúcar e mostra o que eles podem fazer aos miolos de alguém. E, no fim, como fará ao fim da vida, Quixote se arrepende.

Tudo isso em três capítulos, sendo que a cena do retábulo em si dura só um, de umas seis páginas. E, de lá, Cervantes para divertir o leitor com algo mais. Porque chatear não é sua função, jamais.

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