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Milagre! Com dois “olhos” a menos, enxergo melhor
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Arquivo Pessoal
Aos onze anos, eu parecia o Harry Potter. Legal? Não! O bruxinho ainda não existia e eu era só mais um “quatro-olhos”.

Por trás dessas lentes tinha um cara legal – esse aí de cima, com cara de Harry Potter, sou eu, aos onze anos. Não que eu tenha deixado de ser legal. Talvez um pouco, vá lá – a idade vai nos “deslegalzando” e nos ilegalizando. Mas, em linhas gerais, continuo tentando ser legal (nos dois sentidos). O que acontece é que deixei de usar as lentes. Finalmente, depois de duas décadas de óculos e lentes de contato, voltei a enxergar a plenos olhos. Um milagre. Ouvi o comando divino: “Vinícius, meu filho, jogue os óculos fora e volte a enxergar nitidamente”. Então, uma luz vermelha veio de cima, ouvi um estrondo agudo e senti um cheiro de torresmo. No instante seguinte, estava enxergando tudo. E um homem com vestes azuis, rodeado de luz, disse: “Pronto, a cirurgia foi um sucesso”. De fato, um milagre – da medicina, é verdade, mas certamente inspirada por Deus. Sou um homem de fé. Ainda mais agora, que posso ver para crer.

Como se vê, eu me submeti recentemente a uma cirurgia nos olhos, para corrigir a visão. Antes, tinha cerca de seis graus de miopia e, sem o auxílio das lentes, enxergava apenas vultos ao meu redor — o que causava alguns problemas, sobretudo durante a já naturalmente problemática adolescência. Recordo que, em uma “festa americana”, resolvi tirar os óculos para aumentar minhas chances de sucesso – assim, eu ficava mais bonitinho para as meninas e elas, mais bonitas para mim. Tensão. Piás de um lado do ambiente, gurias do outro, como se estivessem em linhas de batalha. Música alta, talvez Roxette. E eu doido para perguntar “How do you do?” para alguma garota, mas para quem? Era preciso escolher. Àquela distância, sem óculos (e com a luz baixa), eu não conseguia distinguir rostos nem formas. O que fazer? Partir para o ataque desesperado, como um falcão cego? Ou esperar, como uma hiena? “Vou naquela do canto”, comentei com um amigo. “Naquela qual?”. “Naquela mais do canto, sentada”. “Cara, não…”. Eu já tinha ido. E só percebi que “aquela” era um amigo cabeludo quando já estava na frente do cara. Sorte que, de perto, percebi o erro, antes que fosse tarde. Coloquei os óculos na mesma hora e não fiquei com ninguém. Melhor assim. Em terra de míope, quem tem óculos não dá em cima do amigo cabeludo.

Noutra vez, com uns quinze anos, eu tirei os óculos para jogar uma partida pelo time do clube. Campeonato municipal, coisa séria. Em uma falta no meio de campo, o treinador pediu para eu lançar a bola para algum atacante do nosso time. Num campo oficial, a cerca de 50 metros da área adversária, eu só enxergava uns borrões correndo de um lado pro outro. Nem a trave eu via. Na dúvida, chutei com toda a força, virei e fui voltando para a nossa defesa. De repente, o time inteiro veio me abraçar. Havia feito um golaço do meio de campo. Porcaria. Eu marquei “o-gol-que-o-Pelé-não-fez” e, meninos, eu não vi.

Acho que a vida dos jovens que usam óculos é bem menos dura atualmente. Há roqueirinhos e atorezinhos que usam óculos só pra fazer gênero, como um acessório (na minha juventude, era um rótulo) – e essas referências favorecem a aceitação. Isso sem falar nos modelos de óculos. Ah, como eu detestava aquele de formato redondo que eu usava. Eu parecia o Harry Potter numa época em que não existia o Harry Potter: ou seja, eu era inapelavelmente um “quatro-olhos” nerd incapaz de fazer mágica ou marcar gol (nem sequer de quadribol). Por essas e por outras, hoje enxergo melhor a vida (com dois “olhos” a menos), mas sei que o que interessa mesmo, olhando no fundo dos olhos, é ser um cara legal.

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Agudas

– “Por que você não olha pra mim? Me diz o que é que eu tenho de mal. Por que você não olha pra mim? Por trás dessa lente tem um cara legal” (Herbert Vianna)

– Um primo me disse que enxerga tão bem que, às vezes, enxerga até o que não deve. O problema, na verdade, não é enxergar tudo. É não ver tudo, e não reparar (em) tudo. Para isso, não tem cirurgia. Como escreveu Saramago, na epígrafe de seu Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

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