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Tribunal em Tóquio (Eduardo Mesquita)
Tribunal em Tóquio (Eduardo Mesquita)| Foto:
Tribunal em Tóquio (Eduardo Mesquita)

Tribunal em Tóquio (Eduardo Mesquita)

Ex-aluno da Faculdade de Direito da UFPR, a quem tive o prazer de orientar em sua monografia de conclusão de curso, Eduardo Mesquita Pereira Alves regularmente envia-me artigos de sua autoria sobre o Direito japonês. Atualmente é mestrando na Universidade de Tokyo (東京大学院法学政治学研究科 – The University of Tokyo Graduate Schools for Law and Politics), tradutor e locutor na NHK World Radio, e escreve um blog (https://eduardompa.wordpress.com).

Eduardo vem acompanhando audiências no Japão. E expôs suas impressões. Nota-se como a nossa cultura é tão diferente da cultura oriental. Recomendo fortemente a leitura.

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Audiências em Tóquio (por Eduardo Mesquita Pereira Alves)

Depois de quase um ano no Japão, tive a oportunidade em fevereiro de conhecer mais de perto o judiciário japonês ao assistir três audiências criminais envolvendo brasileiros no Tribunal Distrital de Tóquio, a convite do intérprete de japonês-português da corte.
Não sou especialista em processo penal e também não conheço a fundo a questão da criminalidade dos brasileiros no Japão, então não pretendo ser muito técnico. Quero apresentar pontos que achei interessantes da perspectiva de vista de um operador do direito conhecendo mais de perto o judiciário em um país estrangeiro.
Assisti a três audiências diferentes. A primeira, de lesão corporal, formação de quadrilha e furto (o réu agrediu um caminhoneiro por ter se irritado pois o mesmo não o deixava fazer uma ultrapassagem na autoestrada. Foram 3 socos e 2 joelhadas, incapacitando a vítima por 1 mês. Após isso, procurado pela polícia, o acusado largou o emprego, se envolveu com dívidas e supostamente teve que furtar carros para pagá-las). A segunda foi um caso de posse de drogas, 30 gr de maconha e anfetaminas. O terceiro caso foi novamente lesão corporal, o agressor estava bêbado, foi apenas um soco, mas a vítima bateu a cabeça e ficou com sequelas.
O Tribunal de Tóquio está localizado no centro político do Japão, Kasumigaseki, ao lado dos ministérios e a duas quadras do Parlamento e do Gabinete (sede do poder executivo). O local inclui o Tribunal Distrital de Tóquio e o Tribunal Superior de Tóquio.
O primeiro ponto que achei interessante já se deu na locomoção até o local. São muitos advogados que se deslocam de trem até o Tribunal (boa parte pode ser identificada pelo broche que costumam usar no terno), algo que seria impensável no Brasil.
Na entrada do prédio passa-se pelo procedimento padrão de segurança de detectores de metal, e a partir dali a locomoção é livre. Detalhe que há uma entrada para advogados e autoridades e uma para as outras pessoas.
Quanto à configuração das salas de audiência, algumas têm 20 assentos para o público, outras são maiores, utilizadas em conjunto para procedimentos do Tribunal Superior de Tóquio, com 56 assentos para o público e espaço para 9 juízes. A promotoria se coloca ao lado esquerdo e a defesa ao lado direito. O juiz senta bem acima das outras partes e na inquirição da testemunha ou do acusado estes se sentam em uma cadeira no meio da sala de frente para o juiz. No decorrer da audiência o acusado permanece algemado em frente a mesa da defesa com um policial de cada lado.
A propósito, me chamou a atenção que nas TRÊS audiências percebi sempre um dos policiais dormindo ou “pescando”. Surpreende, mas não tanto. É bem comum ver japoneses dormindo em locais inusitados (inclusive professores na sala de aula).
Como disse antes, não vou me ater ao procedimento e sim às peculiaridades que me chamaram a atenção. Por exemplo, quando o juiz entra na sala, todos (incluindo o público) são convocados a se levantar e se curvar. O juiz também se curva, então fico em dúvida se é uma saudação geral ou se carrega uma questão de hierarquia superior do magistrado.
Outra peculiaridade de todos os casos que assisti é que por se tratar de estrangeiro há a tradução simultânea do procedimento feita pelo intérprete. Nem tudo que é dito lá dentro é traduzido, o juiz, ao conduzir o procedimento seleciona as partes mais importantes, geralmente excluindo questões procedimentais menores, realizando apanhados de debates maiores com advogados ou promotores. Entretanto, a leitura da acusação e a apresentação das provas são lidas ao mesmo tempo em japonês e português (a tradução do documento escrito é feita previamente para essa parte do procedimento).
Considerando como a sociedade é bastante hierarquizada, e em muitos aspectos ritualizada, interessante com a forma como promotores, advogados e juízes se comunicam. Está longe de ser uma das linguagens mais formais que vi por aqui, e não há pompa nenhuma, não há aquele uso excessivo de pronomes de tratamento equivalentes ao nosso “Doutor” ou “Vossa Excelência”, a comunicação era muito natural. Também havia até mesmo um espírito de cooperação. Em uma das audiências, em determinado momento o advogado não localizava uma prova nos autos e o promotor se deslocou até ele e o auxiliou na localização da página. Todos os juízes que observei conduziam o procedimento com bastante tranquilidade, sem tentar impor autoridade, e sim tentando fazer a audiência caminhar de forma fluída. Entretanto, também senti algo de cerceamento de defesa em alguns momentos.
As audiências têm hora para começar e terminar, e nesse ponto são extremamente pontuais, começam no minuto marcado e terminam na hora exata. Portanto, em determinados momentos o magistrado pedia que fossem feitas menos perguntas, ou sugeria ao réu que oferecesse respostas mais curtas.
Outra peculiaridade foi o foco “moral” da audiência. Existem estudos que mencionam como o procedimento penal no Japão é conduzido bastante por uma linha que identifico como culpa, perdão e penitência (o que é curioso, já que em sociedades de tradição judaico-cristã na qual se espera isso o processo tem muito mais da sanha punitiva, vingança e tentativa de se esquivar de responsabilidade). Pude ver esse aspecto em todos os casos. Em nenhum dos casos o acusado tentou se justificar. Havia grande preocupação, da parte da defesa, em mostrar 1) como os réus se arrependiam do que fizeram; 2) como queriam reparar o dano (em um deles o acusado depositou mais de 600.000 ienes em uma conta vinculada ao processo; 3) o que fariam depois de cumprir a pena.
Também havia algo de moralizante no tratamento dos réus. No caso em que o acusado foi pego com algumas trouxinhas de maconha, 30 gr no total, no momento da apresentação das evidências o promotor colocava a droga em frente, perguntava se era dele e em seguida se ele ainda queria aquilo, e para cada uma o acusado respondia que não, nunca mais. Isso se repetiu 5 vezes, uma para cada evidência. Isso não foi feito de uma forma agressiva, mas de maneira quase paternal.
Apesar desse aspecto moralizante, em nenhum momento foi feita pressão ou tentativa de humilhação dos acusados, seja por parte da promotoria ou do juiz. No final das contas não pareciam se importar muito com o porquê, e sim com o quanto o réu se sentia arrependido, e o quão consciente estava do próprio erro. Isso pode ocorrer, no entanto, pelo fato de que em todos os casos o acusado se declarou culpado, o que é bastante comum no Japão. Mais de 99% dos réus em procedimentos criminais são condenados. A promotoria, por meio da discricionariedade absoluta que detém, costuma oferecer denúncia apenas quando tem certeza de que vai ganhar, e apenas quando não consegue realizar um acordo prévio entre as vítimas e o acusado.
Aparentemente, sabendo disso, a defesa não tenta provar inocência e sim focar nesses elementos de arrependimento que tradicionalmente pesam muito na quantificação da pena e também na obtenção de sua suspensão condicional.

O blog Dinheiro Público agradece a participação.

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