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Coronavírus
Limpeza de uma estação de metrô em Seul, na Coreia do Sul| Foto: YONHAP / AFP

Em algum momento, possivelmente em poucos meses, a epidemia do novo coronavírus vai acabar, como ocorreu com os outros episódios recentes de infecções virais de alcance global. O impacto mais duradouro será o econômico, como atesta o pessimismo demonstrado nas bolsas de valores em diversos países nos últimos dias. O susto está sendo tão grande que a relação do mundo — e aí estamos falando tanto de governos quanto de grandes corporações — com a China nunca mais será a mesma. O Brasil também pode ser afetado por essa mudança.

A questão nem é tanto a responsabilidade que a China tem como local de origem e propagação da doença. O que vai fazer a ficha cair para os detentores de poder e capital é que não se pode depender tanto da China como o chão de fábrica do mundo ou como casa de máquinas do crescimento econômico global.

O imediatismo comercial e industrial terá de ser substituído por um pensamento mais estratégico, geopolítico até. Essa mudança, se for profunda, pode se revelar uma oportunidade para países emergentes e razoavelmente industrializados como o Brasil. Mas voltarei a isso mais para frente.

Antes, é preciso saber de que tipo de dependência estamos falando.

Quando a China enfrentou uma epidemia de SARS (síndrome respiratória aguda grave), que se iniciou no final de 2002 e agravou-se no início do ano seguinte, o impacto na economia foi limitado. O PIB do país crescia de maneira alucinante (mais de 10% ao ano) e, por isso, registrou apenas uma desaceleração entre o primeiro e o segundo trimestres de 2003. O efeito na economia global tampouco foi catastrófico.

Mas há duas grandes diferenças para a situação atual. A primeira é que a China já vive uma tendência de desaceleração econômica, com uma projeção de crescimento anual do PIB de pouco mais de 5% em 2020. A segunda, crucial, é que o tamanho da economia chinesa hoje é oito vezes maior do que em 2003. Como consequência, o peso do país na produção de riqueza global é muito maior.

O mundo, atualmente, é muito mais dependente da China do que a China do mundo. A maior dependência do mundo em relação à China reside principalmente no fato de o país ter se tornado o maior exportador global de produtos intermediários (necessários para a fabricação de outros bens em outros países). Já a redução na dependência da China em relação ao mundo explica-se porque agora o crescimento chinês sustenta-se mais no consumo interno do que nas exportações.

O que deve levar o mundo a rever sua relação econômica com a China é essa dependência em relação ao país como principal fornecedor de produtos intermediários: os chineses abastecem um terço desse mercado. Com isso, quando um espirro de coronavírus suspende a atividade de uma fábrica ou interrompe o funcionamento da estrutura logística de transportes, o efeito imediato é o corte brusco na cadeia de suprimentos global.

E é exatamente por isso que a Apple e outras empresas multinacionais estão há várias semanas buscando fornecedores alternativos para fazer seus produtos.

Um exemplo próximo de nós é o das peças para a indústria elétrica e eletrônica. Quatro em cada dez componentes usados pelas empresas brasileiras do setor são importados da China. Com o coronavírus e a necessidade de manter os trabalhadores em casa, a produção desses itens na China caiu e a indústria brasileira se viu obrigada a também reduzir o ritmo.

Outro exemplo dramático é o da indústria farmacêutica. A China é a maior produtora mundial de insumos para o setor. Dependendo do princípio ativo utilizado nos remédios, é a única fornecedora. Vêm da China 80% dos medicamentos consumidos nos Estados Unidos, sem falar em equipamentos médicos ou seus componentes.

Do ponto de vista estratégico, isso já não fazia sentido antes mesmo do coronavírus. Imagine se os Estados Unidos se vissem envolvidos em uma disputa política ou mesmo em uma guerra com a China e Pequim resolvesse proibir subitamente a venda desses produtos vitais para os americanos?

A questão dos itens farmacêuticos já vinha sendo discutida nos Estados Unidos antes mesmo da epidemia de coronavírus e era um dos argumentos de assessores do presidente Donald Trump para a guerra tarifária com a China: segundo eles, é preciso fazer algo para reduzir a dependência americana de importações chinesas, especialmente de produtos estratégicos.

A guerra de tarifas entre Estados Unidos e China já tinha levado executivos de diversas empresas a concluir que seria necessário procurar fornecedores alternativos para insumos essenciais para os seus negócios. Pouco foi feito, porém, nesse sentido, pois é muito difícil encontrá-los. A China tem uma combinação quase imbatível de mão de obra flexível e boa infraestrutura de produção, além de um mercado consumidor interno em si muito atraente.

A crise do coronavírus e o fechamento temporário de diversas fábricas, em muitos casos de cidades inteiras, na China, porém, podem ser o que faltava para tirar as empresas da inércia. Para quem produz na China para vender na China, como ocorre com diversas montadoras de automóveis que tiveram que parar a produção nas últimas semanas, não há muito o que fazer. Outros setores, porém, ganharam um incentivo redobrado para não depender tanto da China como local de produção ou como fornecedor de componentes essenciais.

Isso abre oportunidade para países que dispõem de uma indústria bem estabelecida, infraestrutura razoável e mão-de-obra barata e relativamente qualificada. Outros países da Ásia preenchem esses requisitos, mas estão demasiadamente conectados às cadeias de valor chinesas para servirem ao propósito de redução da dependência. Sobram como opção o México, alguns países do Leste Europeu e, por que não, o Brasil. Afinal, em alguns setores, como o farmacêutico, não nos falta expertise.

A China, em um cenário pós-coronavírus, vai continuar sendo o chão de fábrica do mundo. Mas um pensamento mais estratégico de governos e empresas multinacionais preocupados em não depender apenas de um país pode abrir novas frentes de investimentos em produção industrial. Restará ao Brasil fazer a lição de casa para atraí-los.


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