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Donald Trump nem completou uma semana na Casa Branca e já temos a primeira crise diplomática entre Estados Unidos e Brasil. Imigrantes brasileiros foram deportados em avião militar com ar condicionado quebrado e, além de viajarem algemados e em correntes, teriam sofrido maus tratos físicos, conforme indicam não apenas seus relatos, mas também imagens de marcas de pancadas nos seus corpos. Sim, o voo já estava acertado antes com a administração de Joe Biden e esta não foi a primeira vez que deportados brasileiros receberam tratamento degradante do mesmo tipo. Achar isso normal, contudo, é antipatriótico.
Diante das cenas dos brasileiros descendo do avião com correntes nos pés e nas mãos, a diplomacia brasileira viu necessidade de se posicionar imediatamente. O Itamaraty reclamou do uso "indiscriminado" das algemas: nem todos os imigrantes brasileiros deportados cometeram crimes além da tentativa em si de entrar nos Estados Unidos para ganhar a vida sem visto.
Seria leviano atribuir a reação do Itamaraty a uma picuinha petista contra Donald Trump. Durante o governo de Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira também pediu aos Estados Unidos que não usassem algemas nos brasileiros durante o voo de deportação. A verdade é que a nota do Itamaraty tem aquele tom cuidadoso de quem passa uma mensagem em defesa dos interesses de cidadãos brasileiros, mas de forma a evitar uma escalada das tensões com os americanos. Os diplomatas sabem que, com Trump, qualquer discordância pode se transformar em bate-boca aberto e resultar em retaliações desproporcionais.
Foi exatamente o que aconteceu em seguida com a Colômbia. O presidente daquele país, Gustavo Petro, recusou voos militares com deportados colombianos depois da repercussão dos maus-tratos recebidos pelos brasileiros. Veja bem: ele não estava se recusando a receber os colombianos de volta, mas queria que fossem transportados em aviões comerciais, para evitar cenas como as que se viu no Brasil. Trump reagiu de forma desproporcional, anunciando tarifas de 25% sobre as importações de produtos colombianos, entre outras sanções. Uma insanidade inclusive do ponto de vista dos interesses americanos: a Colômbia precisa dos Estados Unidos, mas os Estados Unidos também precisam da Colômbia para continuar com sua guerra contra as drogas. Se criar um rompimento com Bogotá, colocará anos de colaboração contra os cartéis e contra as plantações de coca em risco.
É a diplomacia da ameaça e da chantagem pura e simples demonstrando resultados
Voltando à questão dos voos dos deportados: o governo Trump depois afirmou que chegou a um entendimento com a Colômbia e que as deportações continuariam, de forma que as sanções ficariam em suspenso. É a diplomacia da ameaça e da chantagem pura e simples demonstrando resultados. Mas até quando? Até a China aproveitar de vez o vácuo deixado pelos Estados Unidos para aumentar sua influência na América Latina? Continuemos.
O episódio certamente está sendo observado com atenção pelo Itamaraty. Trump, com seus voos de deportação, está ao mesmo tempo cumprindo uma promessa de campanha e colocando um bode na sala dos países latino-americanos. O estardalhaço que ele faz em torno das deportações (mesmo que elas já estivessem acertadas desde a gestão de seu antecessor, Joe Biden) gera uma necessidade de resposta da diplomacia pública dos países latino-americanos, o que por sua vez dá uma oportunidade a Trump colocar o porrete sobre a mesa e ameaçar com retaliações.
A diplomacia brasileira precisa, em casos assim, equilibrar pelo menos dois interesses para o país. Primeiro, a defesa dos direitos humanos de cidadãos brasileiros. Segundo, os nossos interesses comerciais. Engajar-se em uma guerra tarifária com os Estados Unidos seria um desastre para os nossos exportadores. O Itamaraty quer evitar isso porque, ao contrário do que diz o senso comum, governos petistas são mais permeáveis a lobbies empresariais do que à ideologia partidária. Na maioria das vezes, melhor que seja assim. Até aqui, portanto, a diplomacia petista reagiu bem no episódio dos voos de deportados. Mas esperemos até Lula fazer seu primeiro discurso a respeito para tirar conclusões.
O que já dá para afirmar com bastante segurança é que, no campo oposto, do bolsonarismo, os primeiros dias de governo Trump estão demonstrando a humilhação que tem sido a adesão irracional ao novo presidente americano. Trump deixou claro em uma de suas declarações que os Estados Unidos não precisam do Brasil, mas que o Brasil precisa dos Estados Unidos. A verdade é que ele também não precisa dos bolsonaristas tanto quanto os bolsonaristas acham que precisam dele.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja esposa e filho foram as Estados Unidos para "participar" da posse de Trump e acabaram do lado de fora da cerimônia, deposita grande esperança na pressão que o novo governo americano pode colocar sobre Lula e sobre o Judiciário para que ele recupere seu direito de concorrer a um cargo eletivo. E dane-se que esse tipo de pressão possa resultar em prejuízos para os nossos interesses nacionais, o que inclui os interesses comerciais que geram emprego e riqueza no Brasil.
Também no episódio dos brasileiros acorrentados vimos apoiadores de Bolsonaro fazendo a defesa do tratamento dispensado aos imigrantes. É preciso analisar os fatos de forma objetiva, com clareza, e manter o espírito crítico em relação à maneira como o governo Lula reage à crise, mas isso não justifica uma postura de indiferença com os direitos de cidadãos brasileiros de receberem um tratamento digno por parte de países estrangeiros.
A babação de ovo em relação a Trump e seu grupinho de bilionários acaba se tornando, assim, um verdadeiro ato antipatriótico.
Patriotismo é o sentimento de pertencimento afetivo a um país. Conforme já expliquei aqui, há duas variedades de patriotismo: o cego e o construtivo.
O patriotismo cego é rígido e não faz questionamentos. Já o patriotismo construtivo mantém uma postura crítica, mirando em ações que, independente da ideologia do governo de plantão, resultem no bem do interesse nacional. Nas relações do Brasil com outros países, um patriota construtivo analisa caso a caso os acordos e as tensões, posicionando-se de acordo com aquilo que racionalmente é o melhor para os interesses brasileiros e para os valores basilares da nossa democracia.
Trump defende os interesses dos Estados Unidos, e está certo em fazer isso, ainda que para muitos americanos seus atos podem acabar tendo o efeito contrário ao pretendido. Ele não está nem aí para o Brasil. Cabe aos brasileiros, incluindo bolsonaristas e petistas, defender os interesses do nosso país, acima de bandeiras ideológicas e dos interesses pessoais de seus líderes políticos.
Nada mais antipatriótico do que torcer para que um governo estrangeiro prejudique nossos interesses como nação só para satisfazer algum tipo de vingança ou reparação política.





