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(Foto: divulgação site www.ziraldo.com/menino)
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Por vezes ao ministrar cursos voltados para profissionais da área de educação, costumo evocar uma semelhança possível no comportamento de adultos com atitudes consideradas típicas de crianças ou adolescentes – fases da vida hoje muito valorizadas. A impaciência e a inconsequência são dois bons exemplos. Em outros momentos, contudo, reconheço um movimento contrário, que alguns analistas chamam de adultocentrismo. De saída, temos aí uma aparente contradição: afinal de contas, vivemos um tempo “infantocêntrico” ou “adultocêntrico”?

Para refletir sobre tal contradição, sugiro que tomemos a infância como uma categoria, ou seja, como uma construção social e histórica ao invés de um período da vida delimitado apenas cronologicamente. Crianças sempre existiram, evidente, mas a forma como conhecemos e reconhecemos a infância no presente é relativamente nova. Foi necessária a diminuição da mortalidade infantil e a redução mais ou menos generalizada das taxas de fecundidade para que as crianças fossem reconhecidas como tendo um estatuto especial, como sujeitos em formação que precisam de proteção e cuidados.

Pois este ideal tomou aí pelo menos um par de séculos para ser inventado, levando a um conjunto de compromissos internacionais no século XX, como a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 ou a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, para o caso brasileiro, em 1990. Um agenda política substantiva, para proteger e zelar um ideal de infância como fase única e especial da vida.

Pensando num contexto mais próximo, podemos dizer que de algumas décadas para cá a experiência de ser criança mudou significativamente, acompanhando amplas transições econômicas e políticas, como a globalização e a emergência de uma sociedade de consumo (não mais centrada na produção). Há uma geração atrás era muito comum ver crianças brincando na rua, longe da supervisão dos adultos, inclusive nos maiores centros urbanos. Esse cenário foi em larga medida substituído pelas brincadeiras privadas, dentre as quais se sobressaem os jogos eletrônicos de diversos tipos e suportes, o aumento do número de horas passado na escola e também em frente à televisão.

O espaço público que é o espaço tecnicamente compartilhado por todos – ricos, pobres, homens, mulheres, crianças e adultos – tem vivido uma intensa ressignificação, informada de modo bastante hegemônico pela cultura do medo (“não saia na rua pois você pode ser assaltado!”).  Sob a rubrica da “segurança” os pequenos não podem mais frequentar a rua, a praça, o parque. O tempo passado na escola está muitas vezes ligado a sua progressiva precarização e crise de sentido. Em casa, a qualidade dos vínculos fica comprometida pelos rituais do mundo do trabalho. Da perspectiva de muitos médicos e psiquiatras, crianças têm desenvolvido cada vez mais patologias que necessitam de medicalização, como a ritalina, apelidada de “a droga da obediência”.

O documentário “Muito além do peso” (dirigido por Estela Renner, com apoio do Instituto Alana, Brasil, 2012) mostra algumas crianças com quadros clínicos alarmantes de diabetes e colesterol alto, doenças que eram antes encontradas apenas em adultos. Por outro lado, mostra também pais e mães que cedem a qualquer pressão infantil para encherem o refil da mamadeira com mais refrigerante. Embora isso não seja tão auto-evidente como deveria ser, quando não resistimos ao choro e à birra, nos tornamos incapazes de educar e proteger. Mas o que essa paisagem desanimadora tem a ver com nossa pergunta inicial sobre o “infantocentrismo” ou o “adultocentrismo”? Quando olhamos mais a fundo é possível compreender que a aparente contradição é uma inversão ou troca de papeis: adultos infantilizados, incapazes de agir enquanto modelos morais educativos, e crianças adultizadas, enclausuradas e medicalizadas.

Curioso: justamente quando a criança atinge a visibilidade social que permite que as suas relações com os adultos sejam informadas, sobretudo pelo afeto e pelo cuidado, nós não temos tempo a dedicar a este vínculo tão caro e nos escondemos em subterfúgios da cultura de massas e da moderníssima indústria farmacêutica. A Resolução n.163 de 13 de março de 2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que considera abusiva a publicidade infantil em diversos veículos, mostra uma decisão interessante na qual adultos agem como adultos para que as crianças possam viver sua infância mais ao gosto do Ziraldo. O grande segredo do seu Menino Maluquinho, com todas as suas artes e peraltices, é que ele era sobretudo um menino feliz.

Mariana Corrêa de Azevedo é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná e graduada em Ciências Sociais pela mesma universidade. Atua na Associação Projeto Não Violência

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