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(Foto: Divulgação)

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Concordo, pero no mucho. Vamos à encrenca. Acaba de sair mais uma pesquisa sobre práticas (risque “hábito” da expressão – pois é chata e inadequada pra burro) de leitura no Brasil. Vem da Federação do Comércio do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ) e indica que 70% dos brasileiros não leram nem sequer um livro em 2014. O dado replica índices semelhantes, apurados em outras pesquisas, das quais a mais relevante é – com méritos – a Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro. A última edição é de 2012 e vem outra a caminho.

Os tais 70% – como não – geraram uma grita sem tamanho. Não faltam impropérios contra o sistema educacional, análises históricas sobre nossa miséria letrada, pedras jogadas na política editorial, ou na falta dela. Por aí vai. Difícil não fazer coro com os descontentes. Quanto a discordar um cadinho, digamos que é preciso. Não é difícil concluir que os mais indignados se veem como bons leitores, o que lhes credencia para, no mínimo, sapatear em cima do caixão. Mas já declamamos esse script um sem número de vezes. Virou murro em ponta de faca. Penso que seria mais produtivo desossar essas porcentagens escabrosas, de modo a fazer alguma coisa com elas que não seja só chorar.

Em primeiro lugar, as pessoas estão lendo mais do que liam. Pode apostar. As informações a respeito são preliminares, pois há muitas variantes a serem cruzadas, como os dados de inclusão digital, por exemplo. Eles mudam a cada mês. Aquela senhorinha com internet no telefone que ganhou de um filho, oras, está lendo mais do que lia. Há mais aspectos a considerar. Não o fazemos porque temos um discurso viciado, que leva a relacionar a leitura ao livro, como se leitura não significasse uma bacia de atividades e algo mais.

O motivo de relacionar o livro e a leitura é puramente técnico e, claro, faz um baita sentido. Quem chegou ao livro – e é capaz de lê-lo inteiro – teria, em tese, habilidades para outras camadas de leitura. O raciocínio é o mesmo aplicado à cadeia alimentar: quem lê rótulo de produtos no supermercado tem mais cultura nutricional, logo come melhor. O problema é que ao martelar esse raciocínio, reforçamos a derrota, deixando de ver os avanços. Ou mais do que disso – deixamos de perceber que temos uma natureza de leitura própria, diferente da dos franceses ou da dos americanos. Poxa, ser diferente nem sempre significa que seja pior, se me permitem.

Proponho um exercício para azeitar essa tese. A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostrou que a população que lê – míseros 50% da população, o que é um dado no mínimo duvidoso – o faz, quase que maciçamente, de maneira fragmentada. Não “traça” um livro inteiro, mas parte dele. De imediato, pensamos que o sujeito avançou, sei lá, 20 páginas, e largou o volume de lado. Digamos que essa é uma das possibilidades.

A outra é que estava lendo a Bíblia – que não se presta a ser lida como um romance – e uma esmagadora maioria de brasileiros leitores, oras, lê a Sagrada Escritura. É obra complexa, reflexiva, “intensiva”, como se diz nos estudos de leitura, quando a prática de ler tende a um alto grau de assimilação. Menos importante? Ponha-se na conta que Ágape, do padre Marcelo Rossi, se tornou o maior fenômeno editorial brasileiro. Foi adquirido por mais de 9 milhões de pessoas que, sou capaz de apostar, havia muito não iam da primeira à última página. Não conta?

Não estou usando exemplos religiosos por ideologia, juro. Gente bamba, como Felipe Lindoso, autor do delicioso O Brasil pode se tornar um país de leitores?, alertou, em ocasião, que são horas de estudar a influência do livro religioso na alavancada de leitores no Brasil. Observar a leitura a partir das escolhas dos menos letrados é uma boa maneira de remapear nossa tragédia e encontrar saídas.

Não é a única estratégia. Coloquemos na conta que os 13% de brasileiros que chegaram à universidade também leem de maneira fragmentada. Os professores – e não é de hoje – trabalham com capítulos de livros importantes, e não com livros inteiros. Se temos a mesma prática de leitura – aos pedaços – entre os menos e os mais escolarizados, diz algo sobre a maneira que lemos. Nos jornais, os sintomas se repetem – pesquisas indicam que de ponta a ponta, lê-se apenas a crônica, uma historinha curta, de leitura rápida, que pode ser recontada imediatamente por quem a leu.

Não acho que essas e outras escolhas da variada palheta das “leituras” à brasileira devam nos inferiorizar. Melhor partir delas para discutir o assunto e traçar políticas. Sim – 70% não leram um livro em 2014, mas leram. É o que deve nos interessar: o que escolheram e por quê. No mais, melhor considerar a loucura da vida nas cidades – cada vez menos convidativas –, a falta de compromisso com o assunto de outras instituições que não a escola – sobre a qual recai toda a responsabilidade; e sobretudo a falta de exemplos. Parece conversa da Candinha, mas exemplos arrastam, sim.

Observem os índices de leitura na Índia, país que passou pela ascensão de uma nova classe média, como no Brasil. Para o indiano que se firma no mercado de consumo, melhorar de vida é ter carro e isso e aquilo, mas é também ler jornais, por exemplo. Os emergentes brasileiros, ao contrário, tendem a se afirmar no novo posto fazendo plástica, viajando em cruzeiros, adquirindo celulares e – como não – chegando à faculdade, o que é um grande avanço. O livro e o jornal, contudo, aparecem magrinhos na lista de compras. Os novos membros da classe média tendem a se parecer com quem já estava na classe média. Como não veem nenhum deles com o livro na mão, julgam que não tem importância.

Minhas desculpas, mas digo isso para lembrar que a culpa também é nossa, dos leitores escolados. Podemos mudar um pouco essa história lendo em público, dando livros de presente, integrando projetos de leitura, visitando a biblioteca da escola pública do nosso bairro e, sobretudo, perguntando ao porteiro do prédio ou à zeladora do condomínio qual o livro de suas vidas. Haveremos de nos surpreender com a resposta. Pode escrever – eles um dia leram, gostaram, mas se apartaram dessa experiência. Com um empurrãozinho a gente consegue ajudá-los a repetir a dose, dessa vez para sempre.

*José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná – UFPR. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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