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Vlad Herzog
Vlad Herzog| Foto:

A sanha incontrolável da chamada “comunidade de informações”, durante o regime militar, não tinha limites. Depois de desbaratar o movimento guerrilheiro, urbano e rural, “desaparecendo” dezenas de militantes e deixando tantos outros estirados no asfalto ou nas trilhas pelo interior ou nos porões dos estabelecimentos de “investigação”(sic), os  membros do PCB seriam suas próximas vítimas. De nada adiantou o fato de os militantes do partidão terem se oposto à luta armada. Era preciso justificar a existência dos aparelhos de repressão e justiçar comunista fazia todo o sentido.

O ano de 1975 foi marcado pela intensificação de prisões , torturas e mortes. A  cúpula do partido foi caçada impiedosamente; os responsáveis pela divulgação do jornal  A voz Operária;  as lideranças estudantis. As forças de segurança prendiam, batiam, humilhavam, torturavam, seviciavam, para obter informações  sobre as ações de um Partido que só não era legal porque o próprio governo os mantinha na ilegalidade, mas que há muito já havia se integrado na rotina  ( possível, naqueles tempos) institucional, com representantes no legislativo, executivo e mesmo nas forças armadas. Os EUA já haviam reestabelecido relações com a China e o próprio governo Geisel foi o primeiro a reconhecer o governo socialista de Angola. Mas a comunidade de informações continuava a considerar nossos comunistas como um “perigo para a paz e a tranquilidade da nação e do mundo.”

Outras vítimas da sanha desses militares, chamados de “tigrada”, foram os jornalistas simpatizantes ( ou militantes mesmo!) do PCB. E foi aí que resolveram interpelar Vladimir Herzog, um profissional de 38 anos, diretor de jornalismo da TV 2, Canal Cultura, de São Paulo. Respeitado por todos, o tímido e culto Vlad foi intimado no trabalho e pediu para se apresentar no dia seguinte pois não queria atrapalhar o programa que estava concluindo. E no dia seguinte, 25 de outubro, sábado, ele foi mesmo, prestar os tais esclarecimentos. Ficou 7 horas na delegacia do Exército, e , depois, os militares anunciaram seu “suicídio”. Vladimir Herzog foi o 18 cidadão a entrar em uma delegacia da ditadura e “sair” de lá “suicidado”.

Vlad Herzog

Vlad Herzog

O curioso foram as circunstâncias: Herzog teria amarrado uma cinta na barra de ferro de uma sala da delegacia e no seu pescoço. Detalhe: Vlad tinha mais de 1,80 m de altura e a cinta foi amarrada a 1,63m do solo. Outro detalhe: a cinta seria do macacão de preso que ele teve de usar, assim que chegou na delegacia e lhe foi dada voz de prisão por seu envolvimento com o PCB. Agora, reflitam, caros ( e poucos)  leitores: qual macacão de presídio tem cinta?

A notícia atingiu familiares e amigos como um raio. A esposa resolveu fazer um velório e enterra-lo na segunda. Universitários da USP , jornalistas amigos e parlamentares corajosos resolveram propor uma missa na sexta feira. D. Paulo Evaristo Arns ofereceu a catedral da Sé e o rabino Sobel aceitou participar do culto ecumênico em memória do jornalista barbaramente torturado e assassinado.

Os chefes dessa barbárie não eram apenas os militares de baixa patente ou tenentes e capitães fieis à “revolução”. Os generais sabiam e apoiavam ou não se mexiam: general  Confúcio Danton, chefe do Centro de informações do Exército; Ednardo D’Ávila Melo, comandante do II Exército; Sílvio Frota, Ministro do Exército; Ernesto Geisel, presidente da República, só para citar os mais relevantes.

E o que a sociedade poderia fazer? As tentativas de enfrentamento militar eram um equívoco desde o princípio. Os sequestros de embaixadores ( além do cônsul do Japão) , um ato de desespero. Como mostrar que a pretensa defesa do Estado por parte da “tigrada”  estava mais para barbárie do que para civilização? Colocando a cereja no bolo da violência com mais violência?

O dia 31 de outubro, uma sexta feira, foi um dia para a memória do país. Cerca de oito mil pessoas espremeram-se dentro e fora da catedral  da Sé para ouvir as palavras do gigante Arns. Um silêncio que não foi rompido por ninguém, nem estudantes afoitos, nem radicais de esquerda, nem a família com o coração compungido. De repente todos entenderam que a melhor resposta era a sua civilidade. Os militares armaram um ridículo esquema de segurança para evitar qualquer “perturbação da ordem e da tranquilidade”, provocando com isso um engarrafamento de proporções gigantescas. Vendo aquelas tropas com cavalos e sabres à mostra diante da multidão respeitosa, era a demonstração mais nítida e didática de quem era o perturbador da ordem no país naquele momento.

E qual a lição desse fato ao mesmo tempo trágico e memorável?

Na minha opinião, a lição consiste na  sociedade perceber que a violência do Estado deve ser combatida com a cabeça e não com os punhos. Que os black blocs são o sonho da “tigrada”. Que enquanto gente pegava em armas e assaltava bancos e matava inocentes com fardas ( um marinheiro, um sargento, um capitão que não tinha nada a ver), a “tigrada” tinha motivos para falar em segurança nacional e perigo iminente e necessidade de forças especiais e leis de exceção ( não é, Romero Jucá?). Mas quando a população se une, afastando o medo com os olhos arregalados e com as mãos crispadas, mas afastando o medo  e indo às manifestações e, respeitosamente, mostrando ao Estado que quem assina o contrato que justifica a sua existência são as pessoas e que, afinal, “todo o poder emana do povo”, aí a história é diferente.

Vivemos os ecos da ditadura distante e ainda ouvimos o canto das vivandeiras, loucas para retomar os discursos da segurança da pátria e da grandeza do Estado. É hora de refletirmos sobre as estratégias de luta e entendermos que a democracia, a tão cara democracia que construímos nesse país, não foi estruturada  com truculência nem intransigência, mas com paciência e discernimento. A  multidão silenciosa que orou e encheu os olhos de lágrimas naquela missa de 31 de outubro, chorou de ódio e de dor. Mas manteve a calma e a certeza que o fim da escuridão só era possível com a persistência da luz e não com mais trevas. A todos os que apoiam os black blocs, fica essa reflexão.

 

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