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Uma execução ao vivo é insubstituível
Uma execução ao vivo é insubstituível| Foto:
Uma execução ao vivo é insubstituível

Uma execução ao vivo é insubstituível

Na edição do mês de abril da revista francesa “Diapason” foi publicado um interessante artigo assinado por Thierry Soveaux, um especialista em história da música gravada, que me despertou para diversos fatos intrigantes. A frase que mais me marcou foi: “…Isto afirma um princípio evidente: a música é essencialmente analógica”. Esta verdade, com a qual pactuo, nos mostra o quanto somos submetidos, em termos musicais, a uma pressão essencialmente mercadológica. Para nós, no século XXI, nos parece normal perder uma série de sensações em nome da praticidade. A música gravada tem, na minha opinião, uma série bem grande de ações benéficas. Sobretudo nós que moramos num país carente de uma boa vida musical, teríamos uma enorme dificuldade de conhecer obras e intérpretes importantes. Mesmo quando um renomado instrumentista se apresenta por aqui, o preço dos ingressos são tão caros (chegam a custar o triplo de um ingresso cobrado na Europa), que se não fosse as suas gravações a maior parte dos interessados não conheceria, mesmo que parcialmente, a sua arte. Exemplo disso foi o recital do excelente pianista russo Nicolai Lugansky ocorrido no mês passado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde um lugar na plateia custava R$ 420,00, três vezes mais do que paguei para assisti-lo em Budapest. Mas não há dúvida, assistir um artista como Lugansky ao vivo é algo incomparável a uma gravação dele. Mas voltando às perdas pretendo colocar a matéria em dois níveis: a gravação como uma substituição parcial, e o padrão digital que nos foi imposto desde os anos de 1980.

O som analógico: mais próximo da realidade?

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O que se perde e o que se ganha na música gravada

Quando era adolescente eu tinha um colega músico cuja mãe era uma pessoa excepcionalmente sensível. De orientação antroposófica, grande admiradora do pensador Rudolf Steiner, ela, que era professora, não tinha aparelho de televisão ou aparelho de som em sua residência. Ela, uma mulher bem modesta, tinha no entanto um piano de cauda em sua sala, e entusiasmava seus filhos (todos com aptidões musicais) e seus colegas (entre eles eu e minha irmã) a tocarem em sua sala. Dizia ela que mesmo que a execução não fosse perfeita, ouvir ao vivo as ressonâncias dos instrumentos ou das vozes, era algo, para ela, insubstituível. O que sempre admirava em sua casa, no bairro do Jabaquara em São Paulo, era o absoluto silêncio que ali reinava quando ninguém estava a tocar. E quando passávamos para a sua cozinha, a conversa que fluía era absolutamente livre dos sons de fundo de televisão ou de aparelhos de som, tão costumeiros em outras casas. Nunca esqueci destas magníficas tardes de domingo, e muita coisa em minha vida pessoal permanece influenciada por esta senhora (infelizmente já falecida). O que realmente esta experiência me marca até hoje é que uma execução ao vivo desperta certas sensações que uma gravação é incapaz de despertar. Um exemplo pessoal: há alguns anos fui a Nova York para assistir o ciclo completo de óperas de Wagner “O anel do nibelungo”. Na terceira das óperas, Siegfried, o compositor, um incrível orquestrador, utiliza efeitos instrumentais surpreendentes. Naquela ocasião ouvi pela primeira e única vez esta obra ao vivo, e a sensação de ouvir todo aquele intrincado tecido musical de uma forma inimitável em uma gravação me fez perceber que estava vivendo um momento único e precioso na minha vida. Senti e continuo a sentir esta sensação quando escuto ao vivo obras como Elektra de Richard Strauss, A Sagração da primavera de Stravinsky e La Mer de Debussy entre inúmeras outras. Nestes momentos percebo de forma clara que a música não é digital. E que, ao voltar para minha casa, deveria me conformar que aquele tipo de sensação não seria algo frequente em minha vida. Devo então renunciar a estas sensações se desejo conhecer obras e intérpretes inacessíveis no meu dia a dia, mas creio ser importante para mim e para todos termos consciência da limitação que as gravações impõe.

A reprodução digital: Uma fábrica de ilusões?

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Gravação digital: um lance de marketing

A partir de 1980 as grandes gravadoras apregoavam que estavam trazendo algo completamente inovador: a gravação digital. As pessoas até diziam que iriam comprar tal obra, que já possuíam em suas discotecas, agora em versão digital, como se passassem a ouvir de maneira melhor a referida obra. Ainda no tempo dos LPs eles apareciam com o chamativo nome de “Gravação digital”. Que enganação!!! Junto com a revolução “digital” começaram a aparecer os CDs, que substituíam os LPs. Houve ganhos? Tenho lá minhas dúvidas. Primeiro, em termos da tal “revolução digital” proclamo de forma veemente que não houve uma melhora na captação dos sons. Muito antes das gravações digitais certas captações, por exemplo, da RCA VICTOR, as “Living Stereo” (ouçam por exemplo as gravações da Sinfônica de Chicago regida por Fritz Reiner) eram muito superiores a qualquer das maçarocas apresentadas por gravadoras como a Deutsche Grammophon na tal “revolução digital”, e o padrão que se impôs há quarenta anos virou, infelizmente, verdadeira regra de mercado. A própria substituição dos LPs por CDs levanta outra série de dúvidas, sendo que hoje é tido como inquestionável que o LP tem uma excelência em termos de reprodução que o CD não apresenta. Confirmo que existe uma maior praticidade no CD, e que manter um LP sem os “chiados” e “riscos” dá um trabalho enorme, mas que o CD é limitado, isto é indubitável. Voltando à tal “revolução digital” houve outro verdadeiro crime da indústria fonográfica: as remasterizações. Vou citar dois exemplos flagrantes do supra citado selo Deutsche Grammophon: o álbum de Herbert von Karajan frente à Filarmônica de Berlim apresentando obras de Schoenberg, Berg e Webern, e o ciclo “Minha Pátria” de Smetana gravado por Rafael Kubelik à frente da Sinfônica de Boston. Estas gravações dos anos 1970 eram excelentes, exemplares. Quando foram relançadas em remasterizações digitais em CD, quinze anos depois, tornaram-se opacas, “achatadas”, empobrecidas. Creio eu que a maior limitação das gravações feitas hoje, que se tornam uma coisa absolutamente irritante é o som dos instrumentos mais agudos de uma orquestra, especialmente o dos violinos. Mesmo com um aparelho de som com alta qualidade ouvir um naipe de violinos executando notas agudas nos dias de hoje é sempre uma experiência sofrida. É nestes momentos que lembro que o que tenho em meu aparelho de som é uma imitação mal feita da realidade. A música não é mesmo digital. Lembro nesta hora da frase de Kafka, em sua “Carta ao pai”: “o que permanece vivo não pode ser calculado”. A música é uma arte viva. Só isso.

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