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Idealismo, arte e qualidade
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Qualquer regra absoluta tende a ter suas falhas. É, provavelmente, o que podemos pensar quando se defende esta máxima: toda obra pensada com fins comerciais não é de qualidade. Mas vale a pena enveredar por este caminho. Vamos tomar como exemplo, na história da música, dois compositores do primeiro time: Franz Schubert (1798-1831) e Igor Stravinsky (1882-1971).

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Franz Schubert teve das existências mais trágicas de toda a história da música. Acometido por uma doença incurável em sua época, a sífilis, Schubert teve até mesmo seu rosto marcado por este mal, e sabia que não viveria por muito tempo. No último ano de sua vida compôs de forma tão frenética, que ao que parece dormiu apenas 3 horas por noite. É nesta fase que surgem dezenas de obras-primas, que na maioria dos casos nunca foram executadas quando o autor estava vivo, e mesmo nem havia um planejamento para que uma execução destas obras fosse realizada. Exemplo disso é seu magnifico Quinteto em Dó Maior para quarteto de cordas e um segundo violoncelo, obra que em diversos momentos deixa clara a transposição do autor para outra dimensão (por exemplo o primeiro acorde, uma tríade de dó maior se transforma no segundo compasso num tétrico acorde de sétima diminuta). Por que Schubert escreveu tantas obras-primas, a maioria delas longas, na fase final de sua vida? Em minha opinião Schubert tinha uma necessidade visceral de escrevê-las. Fazê-lo era algo absolutamente necessário. O mundo se tonou mais rico. Temos hoje obras-primas como o Quinteto já citado, a Missa em Mi bemol Maior, a Sonata para piano em Si bemol Maior, o Canto dos espíritos sobre as águas, o ciclo de canções Winterreise (viagem de inverno) e tantas obras-primas.

Agora tomemos o caso do grande compositor russo Igor Stravinsky. Ele foi um dos protagonistas do período mais revolucionário, em termos artísticos, do nosso século. Foi o autor que trouxe à baila uma nova visão rítmica e estética através de uma série de obras que o autor escreveu desde sua chegada a Paris em 1910. Atendendo encomendas de Sergei Diaghilev de seus Balés Russos, escreveu Petrushka e Sagração da primavera (entre 1911 e 1913), além de uma série de obras-primas posteriores como Les Noces (As Bodas), Sinfonias para Instrumentos de Sopros, Renard (A Raposa) , A história do soldado, etc. Mas o que se passa com Stravinsky nos anos seguintes? Como seu nome estava consagrado, sua assinatura valia por si só uma fortuna. É o momento em que o grande compositor russo começa a colocar na frente da qualidade a possibilidade de ganhar muito dinheiro com sua música. Um exemplo curioso é uma peça quase que desconhecida do autor: a Serenata em lá para piano solo, de 1925. Stravinsky, antevendo que a gravação discográfica seria algo rentável , compôs esta obra (uma de suas piores composições) para que coubesse exatamente em cada lado de disco de 78 rpm. Este é apenas um exemplo mais radical do grande mestre russo, mas é uma prova cabal da mudança de objetivo deste artista. Stravinsky vai voltar a escrever musica tonal, e em seu período neoclássico (de 1923 a 1950) escreverá de forma frenética, sempre com contratos que lhe davam vantagens financeiras enormes. Como Stravinsky era um grande musico, muitas de suas obras deste período são interessantes, e temos até mesmo obras-primas, como sua Sinfonia dos Salmos, Sinfonia em Três Movimentos, etc. No entanto nenhuma obra tão importante como seus primeiros e revolucionários balés.

Esta atitude comercial de Stravinsky levaria a uma diminuição da qualidade de sua obra? Vamos refletir sobre isso? Mas dá uma certa preocupação compararmos a riqueza em que viveu Stravinsky com a miséria que passou Schubert, ou o contemporâneo de Stravinsky, o compositor austríaco Anton Webern (1883-1945), homem que não tinha o menor senso comercial.

Naxos.com

Para terminar esta reflexão, lembro que o selo Naxos lançou um CD com gravações de obras de Stravinsky, regidas pelo próprio autor, realizadas na década de 40 (posteriormente ele gravou toda a sua obra em condições técnicas bem superiores). Sua regência de A Sagração da Primavera é muito interessante, talvez sua melhor gravação da obra, e percebemos como a obra era complicada 30 anos depois de sua estreia. As trompas na dança final estão totalmente desencontradas, e o pobre solista de trompete baixo não consegue nunca tocar todas as notas de seu solo. Mas juntando o que eu falei acima de interesse comercial, Stravinsky omite, nestas antigas gravações, os trechos mais dissonantes de balé Petrushka, e faz um final conclusivo em cada parte de O Pássaro de Fogo, para que coubessem exatamente num lado de um disco de 78 rpm. Mesmo fazendo isso, suas obras eram realmente muito maiores do que ele.

Para ilustrar este texto dois exemplos em vídeo.

Do Quinteto em Dó maior para quarteto e um segundo violoncelo, interpretado com sofisticação por jovens músicos:

Uma emocionante e rara atuação de Stravinsky regendo em 1965

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