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A descida aos infernos, representação iconográfica que representa a vitória de Cristo sobre a morte, em uma ilustração de um saltério do século XII.
A descida aos infernos, representação iconográfica que representa a vitória de Cristo sobre a morte, em uma ilustração de um saltério do século XII.| Foto: Commons

Quando a pandemia do novo coronavírus fez com que igrejas deixassem de realizar suas liturgias – ainda mais em um período que abarcou a própria páscoa –, me lembrei de uma frase de Oscar Romero, o arcebispo salvadorenho assassinado em 1980 e canonizado pelo papa Francisco em 2018. “Este é o pensamento fundamental da minha pregação: nada me importa tanto quanto a vida humana”, dizia ele. O cristianismo valoriza muito a assembleia dos fiéis reunida para prestar louvor a Deus. Mas valoriza, ainda mais, a vida.

Alguém poderia até questionar a frase de Romero. Como assim, “nada me importa mais do que a vida humana”? Para um cristão, não é Deus quem importa mais? Acontece, porém, que essa frase, posta na boca do próprio Deus, é o fio condutor da história da salvação, segundo o que narra a fé cristã.

Quando Deus nos chama à criação, nos diz: nada me importa mais do que a vida humana. Quando acompanha o seu povo pela história, reafirma: nada me importa mais do que a vida humana. Quando assume a nossa carne com toda a sua contingência e vulnerabilidade, explicita: nada me importa mais do que a vida humana. Quando se deixa morrer crucificado, declara com seu sangue: nada me importa mais do que a vida humana. Quando nos chama à ressurreição eterna, promete: nada me importa mais do que a vida humana.

Para o Evangelho, não há oposição entre teocentrismo e antropocentrismo. A Boa Nova nos revelou que o próprio Deus, o Senhor do universo, se faz antropocêntrico – porque ele é Amor e o Amor faz do amado o centro da sua vida. A cruz grita que Deus valoriza mais a nós do que a si mesmo. Jesus não se manifesta como um “Deus acima de todos”, mas como um Deus que se despoja, assume o último lugar, lava a sujeira dos nossos pés e se faz servo da humanidade – até que, no fim, “Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). Quem quiser segui-lo se dispõe a percorrer o mesmo caminho.

Entre teocentrismos e antropocentrismos, o cristianismo é sobre descentrar-se de si mesmo. Na sua concepção, nem Deus nem o homem assumem o centro contra o outro: no centro está a comunhão. Na natureza mais íntima de Deus, é isso que o cristianismo vê: uma comunhão de Pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – em que a identidade de cada uma está precisamente naquilo que recebe das outras. Cada Pessoa não é autorreferencial, não propõe a si mesma, não se arroga superior, mas se doa totalmente às outras.

Entre teocentrismos e antropocentrismos, o cristianismo é sobre descentrar-se de si mesmo

Essa dinâmica permanece quando uma das Pessoas, o Filho, assume a natureza humana. Jesus insiste continuamente que só se compreende a partir de sua relação com o Pai – e não vive a sua vida para si mesmo, mas para a missão que o Pai lhe confiou: testemunhar o amor de Deus por cada homem e mulher. Ele de tal forma se descentra, vivendo o mesmo modo de relacionar-se que vive com o Pai, que se anula e se esvazia até a morte. E da sua morte, vivida como entrega, nasce a vida ressuscitada – a ressurreição da carne como sinal da vitória da vida sobre a morte.

É justamente isso que nós, cristãos, celebramos na semana passada. Por isso, por mais excepcional que seja a nossa situação atual, não foi uma contradição não nos reunirmos para celebrar a páscoa. A pandemia não nos impediu de celebrá-la, em nossas casas, em nossas famílias, em nossa interioridade ou nos encontrando via videoconferência. Nós celebramos, sim, a páscoa – não apesar do isolamento social, mas também precisamente por meio dele: no cuidado mútuo uns com os outros, optando por salvaguardar a vida, celebramos aquele que disse: “Eu vim para que todos tenham vida – e vida em abundância” (Jo 10,10).

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