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O presidente dos EUA, Joe Biden| Foto: Brendan Smialowski/AFP

Na última quarta-feira (28), o novo presidente dos EUA, Joe Biden, realizou seu primeiro discurso perante uma sessão conjunta do Congresso. Em pouco mais de uma hora, ele apresentou seus planos para a economia, para projetos de bem-estar social, para o comércio e para temas internacionais e de segurança, especialmente a relação com a China. Alguns pontos sobre a política interna merecem destaque, comentários e análises, mostrando quais serão as prioridades do governo e também as referências históricas do discurso.

O pronunciamento não é oficialmente um “State of the Union”, os discursos da presidência perante a sessão conjunta, que abrem o ano. Esses tradicionalmente são em janeiro, ou seja, o presidente, em seu primeiro ano, não costumava falar diretamente ao Congresso. O costume de um discurso feito pelo novo presidente em meados de fevereiro, normalmente perto dos cem dias de governo, começou com Ronald Reagan, em 1981, e se manteve desde então. No caso de Biden, o discurso foi no 99ª dia de seu governo.

Biden abriu lembrando do “ambiente extraordinário” do discurso, uma referência ao fato de que ele falava para apenas duzentas pessoas. Habitualmente, são 1.600. O número reduzido é explicado pelos protocolos de segurança e de saúde pública, por isso, a presença de deputados e de senadores foi feita por sorteio, com alguns por ordem de chegada. Também abriu lembrando que se tratava da primeira vez na História em que uma sessão conjunta do Congresso era presidida por duas mulheres, Nancy Pelosi da Câmara e a vice-presidente Kamala Harris como líder do Senado.

Vacinas e auxílios

A pauta interna do seu discurso foi voltada, principalmente, para a recuperação econômica durante e pós-pandemia. O tom foi de “redenção”, muito parecido com o tom usado por Donald Trump na mesma circunstância em 2017. “A América está se erguendo de novo, escolhendo a esperança em vez do medo, a verdade em vez de mentiras e a luz em vez das trevas”, para superar “a pior pandemia em um século. A pior crise econômica desde a Grande Depressão. O pior ataque à nossa democracia desde a Guerra Civil”. Essa última frase faz uma óbvia referência aos eventos do dia Seis de janeiro de 2021.

Biden mencionou o sucesso do programa federal de vacinação, que ministrou mais de 200 milhões de doses em cem dias. É importante lembrar de que a compra dessas vacinas teve grande papel do governo Trump. Ao mesmo tempo, o governo Biden foi importante para ampliar, sobremaneira, as redes de distribuição de vacinas, criando centros de vacinação federais e realizando convênios com farmácias, não apenas repassando as vacinas aos estados, como fazia a administração republicana.

Ainda nessa seara, mencionou os cheques de auxílio emergencial distribuídos pelo governo, somando bilhões de dólares. Também passou por reformas no sistema de saúde, para atendimento a idosos, veteranos e combate aos opioides. Foi nesse contexto a referência positiva ao “último presidente”, sem citar Trump pelo nome. Biden defendeu políticas que derrubem o preço dos remédios, já que o mercado de fármacos dos EUA é um dos mais caros do mundo. “Nós sabemos como fazer isso. O último presidente tinha isso como objetivo”.

Outras questões sociais internas abordadas por Biden foram políticas e propostas de seu governo para combater a disparidade social entre brancos e negros, asiáticos, indígenas e latinos; combater a “epidemia de violência por armas de fogo”, banindo armas de alto poder de fogo e maiores mecanismos de controle de venda de armas; a proteção aos “dreamers”, os imigrantes em situação irregular que chegaram nos EUA ainda menores de idade, ou seja, sem responsabilidade pela infração migratória; a expansão de investimentos federais no ensino infantil, apontando, corretamente, diga-se, os diversos estudos que mostram que crianças que aprendem bem terão maior facilidade de aprendizado até a vida adulta.

Algo muitíssimo interessante do discurso de Biden, e que está presente em diversos discursos anteriores similares de outros presidentes, é o tom propositivo. Não foi um pronunciamento meramente declaratório, de "precisamos fazer isso e aquilo''. Praticamente todos os pontos eram acompanhados de um projeto já elaborado, ou então o pedido para o Congresso debater aquele tema. Em outras circunstâncias, Biden pedia ao Congresso para aprovar medidas que já estavam em pauta e, em diversas vezes, falou “mandem para a minha mesa” para que ele sancionasse os projetos. É importante pontuar isso para evitar a imagem de um discurso cheio de platitudes ou mera formalidade.

Pacotes econômicos

Muito do discurso foi dedicado aos temas da recuperação econômica do país pós-pandemia, com Biden falando do seu pacote de 2,3 trilhões de dólares para investimentos em infraestrutura, numa definição bem ampla, desde postos de abastecimento elétrico em rodovias até renovação do saneamento básico do país, com pautas ambientais e, principalmente, de geração de empregos. O próprio nome do pacote é American Jobs Plan, “Plano americano de empregos” ou “Plano de empregos americanos”, com uma dupla interpretação proposital.

Para ilustrar seu plano, Biden usou o encanamento com chumbo como exemplo. Seu projeto também é “água limpa. Hoje, até 10 milhões de lares nos Estados Unidos e mais de 400.000 escolas e creches têm canos com chumbo, inclusive na água potável – um perigo claro e presente para a saúde de nossos filhos”. Renovar a infraestrutura com investimentos do Estado, no raciocínio de Biden, é melhorar a saúde da população, criar empregos, melhorar o meio ambiente e movimentar a economia, tudo ao mesmo tempo.

Resumindo: “Por muito tempo, deixamos de usar a palavra mais importante quando se trata de enfrentar a crise climática: empregos. Empregos. Empregos”. E isso, obviamente, também movimenta uma fatia importante do eleitorado que votou em Trump: trabalhadores sem diploma universitário. Biden sabe que Trump foi o segundo candidato mais votado da História, um eleitorado que não pode ser ignorado, e ele deixa isso explícito ao dizer que o plano cria empregos para todas as qualificações, e que “todos fazem parte”.

E como esse plano será financiado? “Eu me recuso a aumentar os impostos dos trabalhadores e da classe média”. Irá aumentar os impostos das grandes empresas, e trouxe números que, independente da posição ideológica de cada um, são preocupantes, como que as 55 maiores corporações dos EUA pagaram zero impostos federais no ano passado, com lucros superiores a 40 bilhões de dólares, e que muitas delas evitam impostos por meio de paraísos fiscais. Biden citou nominalmente Suíça, Bermudas e Ilhas Cayman. “E eles se beneficiam de brechas fiscais e deduções para empregos de offshoring e transferência de lucros para o exterior. Não está certo”.

Isso é uma menção velada ao projeto de Biden de defender um imposto mínimo que seja válido para todas as principais economias, uma espécie de “protecionismo fiscal” dos EUA, para impedir que grandes empresas fujam dos impostos do país. Falou que o corte fiscal de 2017 aumentou o déficit em dois trilhões e despejou bilhões nos “bolsos dos CEOs”, deixando a disparidade salarial nos EUA no seu maior nível histórico. Novamente, Biden usou os números: “A pandemia só piorou as coisas. Vinte milhões de americanos perderam seus empregos na pandemia – americanos de classe média e trabalhadora. Ao mesmo tempo, cerca de 650 bilionários nos Estados Unidos viram seu patrimônio líquido aumentar em mais de um trilhão de dólares no mesmo período”.

História como legitimadora do presente

Biden resumiu sua perspectiva econômica em dois momentos. “[Existem] Bons homens e mulheres em Wall Street, mas Wall Street não construiu este país. A classe média que construiu o país, e os sindicatos construíram a classe média”. Ou seja, um foco no trabalho e na economia, não no mercado financeiro. Sobre sindicatos, veremos mais adiante. Outro momento foi ao dizer “compatriotas, economia gotejante nunca funcionou e é hora de fazer a economia crescer de baixo para cima”. A “economia do gotejo”, trickle down economics, é o pensamento que defende o protagonismo econômico dos mais ricos ou das maiores empresas, que farão a economia toda se desenvolver, de cima para baixo.

Essa expressão está muito ligada ao período Reagan, nos anos 1980, um choque liberal na economia dos EUA que afetou o sistema de bem-estar social do pós-Segunda Guerra. A conta chegou com seu sucessor, George H. W. Bush, que na campanha de 1988 avisou que “não teremos novos impostos”. Teve que quebrar sua promessa e foi derrotado ao buscar a reeleição, por Clinton, em 1992. Fica explícito que a visão de Biden para a economia dos EUA é a do Estado como mediador da recuperação pós-pandemia via a criação de postos de trabalho e renovação da infraestrutura, que permita dinamizar a economia. Algo exatamente oposto das políticas de “austeridade” ainda defendidas em alguns lugares.

Também oposto das políticas defendidas por seu antecessor. Então, como propor tais pacotes sem a ruptura soar por demais radical? Um dos usos mais comuns da História é como legitimadora do presente. Biden buscou vários paralelos com a História dos EUA, especialmente com Franklin Delano Roosevelt, presidente que reformulou o partido democrata, iniciando o processo que resultou no partido atual. Governando de 1933 a 1945, FDR é muito lembrado pelo New Deal. A expressão, entretanto, possui três significados. A coalizão New Deal eleitoral; o primeiro pacote New Deal, extremamente intervencionista; e o segundo New Deal, que ressoou até a década de 1970.

Quando Biden falou dos sindicatos e pediu a aprovação da Lei Proteger o Direito de Organizar, que garante a sindicalização dos trabalhadores, ele faz um paralelo direto com a coalizão New Deal, que colocou os sindicatos na linha de frente eleitoral. Ao falar do seu plano de “colarinho azul” para "construir a América”, ele também remete aos anos 1930. Ao defender a postura de “Buy American”, ele lembra justamente de que isso é lei desde o mesmo período: de que o governo dos EUA deve priorizar empresas dos EUA em seus contratos e incentivos. Apesar da imagem de defensor do livre comércio, é importante sempre lembrar que a economia dos EUA é bastante protegida. 

Disputa pela primazia mundial ontem e hoje

O uso da História para justificar o seu projeto e diminuir a estranheza ficou explícito logo no início. “Ao longo de nossa história, se pensarmos bem, o investimento público e a infraestrutura literalmente transformaram a América, nossas atitudes, bem como nossas oportunidades. A ferrovia transcontinental, as rodovias interestaduais uniram dois oceanos e trouxeram uma era de progresso totalmente nova para os Estados Unidos da América”. O segundo New Deal não foi uma mera “intervenção” na economia, ou “pagar para as pessoas não trabalharem”. Foi um dos maiores programas de criação de postos de trabalho da História, para superar a Crise de 1929 e a seguinte Grande Depressão.

Outra referência a Roosevelt esteve até nas vacinas. “E nosso suprimento de vacina (...) se tornará um arsenal de vacinas para outros países, assim como a América foi o arsenal da democracia para o mundo”, uma referência ao discurso de Arsenal da Democracia, quando Roosevelt se comprometeu com a produção bélica antes mesmo da entrada dos EUA na guerra. Como se não estivesse óbvio, Biden decidiu simplificar ao encerrar: “Em outra era, quando nossa democracia foi testada, Franklin Roosevelt nos lembrou: 'Na América, fazemos nossa parte'. Todos nós fazemos nossa parte. Isso é tudo que estou pedindo: que façamos nossa parte, todos nós”.

Existe também outro elemento que aproxima os planos de Biden e de Roosevelt: o contraste internacional. Biden, diversas vezes, lembrou da competição com a China e da rivalidade para “vencer o novo século”. Questões de política externa do discurso ficarão para uma coluna futura, dada a extensão dessa, mas é interessante pontuar essa comparação e esse constante frisar. Tanto Biden quanto FDR sucederam republicanos defensores de economias pouco reguladas. E, nos dois momentos, existia a crítica e o contraste com o que era visto como o sucesso das economias planejadas.

A política dos EUA na década de 1930 enfrentava comparações com o Plano Quinquenal de Stálin, que visava transformar a URSS de uma economia rural em um país industrializado. Era central nesse debate o fato de que a URSS não havia sofrido com a Crise de 1929, já que estava descolada do sistema financeiro internacional. A imagem, naquela época, era de um sucesso e de grande crescimento econômico. Também não é coincidência que o liberalismo econômico retoma força na década de 1980, com o citado Reagan, quando a URSS começa a ser vista como derrotada e o capitalismo liberal triunfante no “Fim da História” de Francis Fukuyama.

Toda essa situação é muito análoga ao que ocorre hoje, substituindo os atores por Biden, China e Xi Jinping, e a crise pela de 2008 e pela pandemia do coronavírus. O contraste e a pressão são essenciais em ambos os momentos históricos, num paralelo que fica claro nas palavras de Biden e suas constantes referências ao passado e ao fato da competição com a China ser um grande motivador dessas reformas. Se o interregno pós-Guerra Fria já havia acabado na geopolítica e nas relações internacionais, ele agora também acabou na economia, e a disputa que era pelo século XX agora reflete na disputa pelo século XXI.

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