Uma das mais sólidas e maduras democracias do mundo teve seu dia de república bananeira, nas palavras do ex-presidente George W. Bush, um republicano. Após dezenas de milhares de apoiadores, reunidos em Washington, ouvirem do presidente Donald Trump que “nós vencemos essa eleição, e vencemos de lavada”, e que “nós nunca desistiremos, nós nunca concederemos, isso não acontece, você não concede quando há roubo envolvido”, um grupo invadiu o Capitólio, sede do Congresso norte-americano, forçando a suspensão da sessão que certificaria os resultados do Colégio Eleitoral e confirmaria a vitória do democrata Joe Biden na eleição ocorrida no início de novembro do ano passado. Foram necessárias várias horas para retirar todos os invasores, e só então a sessão teve como prosseguir, sob a liderança do vice-presidente Mike Pence (também presidente do Senado) e da presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi.
Desde o início da apuração, Trump vem alegando que uma série de fraudes, especialmente nos votos depositados pelo correio – muito mais numerosos em 2020 por causa da pandemia do coronavírus –, lhe custou a vitória em estados decisivos para a disputa, como Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Geórgia. Inúmeras denúncias foram publicadas em mídias sociais, reunidas pelos advogados do presidente e levadas aos tribunais. No entanto, nenhum juiz, em nenhuma instância do Judiciário norte-americano, viu elementos que justificassem a anulação de resultados ou recontagens massivas – e isso inclui muitos magistrados apontados pelo próprio Trump, como lembrou o conservador Rich Lowry em artigo publicado na National Review e republicado pela Gazeta do Povo. Alguns condados até realizaram recontagens que alteraram ligeiramente o número de votos, mas as discrepâncias ficaram muito longe de mudar o resultado da eleição. Se por um lado é impossível descartar de antemão a existência de irregularidades pontuais, por outro é igualmente improvável a fraude massiva que Trump afirma ter ocorrido.
Nenhuma convicção, nem mesmo a mais nobre, justifica o recurso à força para interromper o funcionamento normal das instituições democráticas
Trump havia feito o certo: buscara os caminhos institucionais – no caso, a Justiça norte-americana. Seus aliados no Legislativo fizeram o mesmo na sessão de certificação dos resultados, usando ferramentas previstas na lei para contestar os resultados da Pensilvânia e do Arizona – foi justamente quando os parlamentares debatiam uma dessas objeções que houve a invasão do Capitólio. Com a retomada da sessão, ambas as objeções foram derrubadas pelo voto dos congressistas. A via institucional, no entanto, terminava ali, e aos autênticos defensores da democracia, vendo-se derrotados, caberia reconhecer que, mesmo tendo feito todos os esforços possíveis dentro do marco legal, Biden estava eleito e assumiria a Casa Branca em duas semanas.
O que jamais poderia ter ocorrido foi o que acabou acontecendo: o uso da força para conseguir a suspensão de uma sessão do Poder Legislativo norte-americano. A Gazeta do Povo já defendeu, inúmeras vezes, que “nenhuma convicção, nem mesmo a mais nobre, justifica o recurso à força para interromper o funcionamento normal das instituições democráticas” e que a violência e a invasão são “sintomas de um preocupante déficit democrático que enxerga a força bruta como meio legítimo de atuação política”. Este raciocínio vale para todos os invasores e vândalos que, com suas ações, cerceiam direitos alheios e bloqueiam o curso normal da dinâmica política: invasores de escolas e reitorias de universidades; sindicalistas que invadem plenários de câmaras de vereadores, assembleias legislativas e do Congresso Nacional; black blocs, Antifas e membros do Black Lives Matter; e, por certo, apoiadores de Donald Trump.
Este ataque à democracia norte-americana se torna ainda mais inaceitável quando se analisa o papel de Trump no episódio. É verdade que o presidente não chegou a incentivar explicitamente a invasão, mas é inegável que sua retórica forneceu a senha de que os radicais precisavam. Se “nós nunca desistiremos, nós nunca concederemos” (o jargão político norte-americano para o reconhecimento de uma derrota eleitoral), conclui-se que há de se fazer o que for necessário para que prevaleça o que Trump e esses apoiadores julgam ser a “verdade”, ou seja, sua vitória. Só com o tumulto em curso, a condenação internacional – incluindo aliados, como o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson – e a confirmação de uma morte (ao fim, o saldo da invasão foi de quatro mortos), o presidente fez um apelo aos invasores, gravando um vídeo pedindo que eles deixassem o Capitólio. Mas a essa altura o dano já estava causado, e até mesmo políticos republicanos acreditam haver margem para que Trump seja removido e Pence conduza o governo até a posse de Biden, com base na 25.ª Emenda da Constituição norte-americana.
Todos os aspectos positivos da administração Trump, como a recuperação da economia e do emprego antes da pandemia e as indicações para a Suprema Corte, empalidecem diante deste acirramento da polarização, que fica como seu maior legado. Ela não é invenção do atual presidente; foi cultivada com esmero por ambos os lados do espectro político ao longo dos últimos anos – como não lembrar de Hillary Clinton chamando os eleitores de Trump de “deploráveis” durante a campanha de 2016? –, mas atinge seu ápice agora, quando o próprio presidente do país lança descrédito sobre o processo eleitoral.
Apaziguar as tensões será o grande desafio de Biden, mas o Partido Democrata está disposto a isso? Enquanto apoiadores de Trump invadiam o Capitólio, o estado da Geórgia dava suas duas cadeiras no Senado a democratas, o que deixará o partido no comando das duas casas do Congresso. Sem necessidade de propor plataformas mais consensuais, que convençam ao menos alguns parlamentares republicanos, a ala mais extremista do partido – personificada em deputadas como Alexandria Ocasio-Cortez e na vice-presidente-eleita Kamala Harris – pode acabar dando as cartas e só poderá ser contida por outros democratas mais moderados. Se o ideário dos radicais de esquerda prevalecer, o fosso que divide a sociedade norte-americana ficará cada vez mais profundo.
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