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Trump e Erdogan na Otan
Presidente dos EUA, Donald Trump (E), e o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, durante cúpula de 70 anos da Otan| Foto: ETER NICHOLLS/POOL/AFP

A cúpula da Otan realizada nesta semana ganhou os noticiários mais pelos aspectos pessoais. O clima desagradável entre os presidentes da França, Emmanuel Macron, e dos EUA, Donald Trump, quando ambos discutiram a declaração do francês de que a Otan estava em “morte cerebral”, a suposta zombaria entre líderes europeus em relação ao espírito midiático de Trump, o retorno prematuro do presidente dos EUA ao seu país, etc. Mais uma sessão de “olhem como Trump é excêntrico”, distanciando do crescente problema: qual a função da Otan em 2019?

O próprio Donald Trump já classificou a aliança militar de “obsoleta”. Criada em 1949, ela serviu para institucionalizar o que já existia na prática: uma proteção da superpotência americana, então a única com poderio nuclear, em relação aos países da Europa ocidental contra uma eventual agressão soviética. Seis anos depois, a institucionalização de elos militares foi feita do outro lado da Guerra Fria, com o Pacto de Varsóvia entre a URSS e seus aliados da Europa oriental.

A Guerra Fria acabou, a Alemanha foi reunificada, o mundo foi tomado por uma onda de otimismo nos anos 1990, junto com isso a primeira expansão da Otan ao leste, ainda motivada pela lógica de conter o poderio russo. Os novos aliados dos EUA, Polônia, Hungria e República Tcheca, foram integrantes do Pacto de Varsóvia. Com a permanente Guerra ao Terror, em 2001, a expansão foi ainda mais ao leste e mais profunda. Sete novos países na aliança, em uma tacada só.

E então a Otan passou a fazer fronteira direta com a Rússia, com os três países bálticos, mais Romênia e Bulgária, que partilham da costa do Mar Negro. No ano de 2009 entram Albânia e Croácia. Em 2017, Montenegro, e assim que a Espanha conseguir estabilizar seu governo, a Macedônia do Norte entrará na Otan; das seis repúblicas da ex-Iugoslávia, quatro estarão na aliança. A entrada na aliança é acompanhada de possibilidades de novos equipamentos militares e proximidade doutrinária com países como EUA e Alemanha.

A falta de foco

A questão é: qual é o inimigo da Otan? Cinco contradições e divergências impossibilitam essa resposta. No fundo, tais contradições ameaçam a própria coesão da aliança e, como a História já demonstrou, uma aliança sem coesão é muito mais um perigo do que um alívio, mas isso é uma retrospectiva para outro texto. A primeira contradição é que, embora a lógica da expansão da Otan seja mirada contra a Rússia, o governo de Moscou já não é mais a maior ameaça. Ao menos essa não é a percepção geral.

Os países bálticos e a Polônia certamente sentem a Rússia como uma ameaça, seja por razões históricas, por terem minorias russas em seu território ou apenas por estarem do lado da região mais militarizada do planeta, Kaliningrado, a antiga Konigsberg. Finlândia e Suécia, embora não sejam membros da Otan, também concordariam com essa visão. Por outro lado, a França de Macron anseia poder reabilitar seus laços com Moscou, enquanto a Alemanha possui fortes laços econômicos com a Rússia.

Tais laços incluem uma quase dependência energética de gás natural russo. Uma terceira categoria de países são os que, historicamente, possuem relações com a Rússia diferentes das que existem atualmente. Por exemplo, a Turquia, histórica rival e alvo do expansionismo czarista, hoje tem boas relações com Moscou. Já a Romênia, cuja independência foi fruto das intervenções russas mirando nos Otomanos, hoje está distante, cada vez mais europeia.

Finalmente, a relação dos EUA com a Rússia. Existem as sanções por causa da Crimeia, mas Washington e Moscou dificilmente entrariam numa rota direta de conflito, já que isso poderia significar até mesmo uma hecatombe nuclear. E aqui entra a segunda contradição. Para Washington, o rival geopolítico das próximas décadas é a China, uma postura cada vez institucionalizada sob o governo Trump. Um de seus principais conselheiros, Michael Pillsbury, é ferrenho adepto dessa bandeira.

Para ele, e outros do círculo do governo, deter Pequim, o que inclui a corrida tecnológica, é o principal objetivo; o exemplo mais público disso é a disputa pela rede 5G de internet. A Europa, entretanto, não está na mesma sintonia. Alguns enxergam a China como apenas uma potencial parceira econômica. Outros países, como a Itália, vêem na China um investidor polpudo em infraestrutura, um cartão de crédito dourado que possibilitaria sair da estagnação econômica.

Existe aqui uma questão geográfica. Mudar o foco da Otan para mirar na China adianta de quê no caso de países como a própria Itália, a Bélgica, dentre outros? No Pacífico, os aliados dos EUA estão no Japão e na Austrália, principalmente. As próximas três contradições são de caráter interno da atual Otan, não se trata de quem é o inimigo da aliança, mas se esses aliados de fato estariam na mesma trincheira contra um inimigo comum. Mais que isso, se eles mesmos não podem ser inimigos um dia.

As contradições internas

Primeiro, as contradições internas. Em quase toda cúpula da Otan, Grécia e Turquia precisam realizar cúpulas bilaterais, para resolver alguma disputa do momento. Em 2019 a discussão voltou aos limites marítimos; mais água significa maior zona econômica exclusiva e mais possibilidade de recursos naturais. Gregos e turcos possuem desavenças por séculos; não é coincidência que ambos foram admitidos na Otan ao mesmo tempo, em 1952. Se apenas um entrasse, o outro bateria na porta soviética.

Além dos limites marítimos, Grécia e Turquia estão envoltos em um conflito congelado no Chipre, e são alguns dos maiores arsenais convencionais da Otan, um mirando no outro. A pequena Grécia gasta, em média, quase 6% de seu orçamento nacional nas forças armadas. Outro exemplo, em escala mais tímida, é o da entrada da Macedônia do Norte, que também não deve seguir uma agenda amistosa com os “aliados” da Albânia, que também não costumam andar junto dos montenegrinos. As minorias albanesas nos vizinhos, somadas à questão do Kosovo, geram animosidade e desconfiança entre eles, assim como a relação da Hungria com a Romênia, recentemente abordada aqui nesse espaço.

A próxima contradição é fruto dessa divergência de agendas, agora no foco extra-Otan. Potências regionais, mesmo integrantes da Otan, possuem agendas próprias no mundo multipolarizado. E é isso que explica a origem do comentário de Macron, sobre a “morte cerebral” da Otan.

A Turquia, um país da Otan, iniciou uma operação contra os curdos sírios, aliados franceses e ex-aliados dos EUA. Isso faz parte da agenda nacional turca em relação aos curdos, mas gera um racha dentro da Otan. É um aliado da Otan atacando o aliado de outro aliado da Otan, o inverso do ditado que diz “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Fica a pergunta de um milhão de dólares: se os curdos sírios, ou até mesmo o governo Assad, atacam o solo turco, a Otan irá em defesa da Turquia?

Teoricamente, são obrigados. É uma aliança defensiva, atacou um, atacou todos. Na prática, qualquer pessoa razoável sabe que isso dificilmente aconteceria. Ou seja, é uma aliança disfuncional! Se ela só serve em alguns momentos e outros não, para que serve? Um casamento é na riqueza e na pobreza, não “na riqueza e até um pouquinho pobre, não muito”. A Turquia, hoje, ao se distanciar cada vez mais da Otan em busca de sua própria agenda, é o principal exemplo dessa relação falha, mas não o único.

Finalmente, a competição tecnológica e econômica interna. Trump deseja que os países europeus aumentem seus gastos em defesa, para o patamar de 2% do PIB, como determinado pela carta da aliança. Ao mesmo tempo, deseja que esses investimentos sejam focados da maneira que mais interessar Washington, na prática mantendo a dependência militar do auge da Guerra Fria. Os tempos são outros, entretanto, e a indústria bélica europeia cresceu e se modernizou.

O ideal seria que aliados adotassem armamentos e doutrinas padronizados, melhorando a eficiência e reduzindo custos. Algumas iniciativas militares internacionais são bons exemplos, como o caça F-35, fruto de uma parceria de quase uma dezena de países. Ao mesmo tempo, com a competição entre empresas gigantes como Boeing, Airbus, Leonardo, BAE Systems, dentre outras, esse cenário é quase utópico. Cada país vai buscar garantir sua autossuficiência bélica e tecnológica.

O problema é que isso gera conflitos internos aos aliados da Otan, consequentemente, mais distanciamento. Muitas possibilidades estão na mesa. A Otan pode acabar, pode ser substituída por uma nova estrutura, pode mudar suas prioridades, países podem sair, países podem mudar seus focos operacionais, etc. A cúpula foi encerrada justamente com um grupo de trabalho que vai, por um ano, pesar todas essas contradições e tentar achar uma solução. E talvez não ache.

Conteúdo editado por:Isabella Mayer de Moura
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