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General Juan Manuel Rosas, chefe supremo da Confederação Argentina.
General Juan Manuel Rosas, chefe supremo da Confederação Argentina.| Foto: H. B. Norris/Domínio público

Uma derrota judicial do governo de Javier Milei evoca a sangrenta e turbulenta história argentina. Na última terça-feira, dia 27 de fevereiro, um tribunal federal argentino decidiu a favor da província de Chubut contra o governo federal da Argentina e a retenção de 13,5 milhões de pesos dos repasses às províncias pelo regime do Fundo Fiduciário para Desenvolvimento Provincial. Além da política atual, essa notícia também permite compreender um pouco da História do nosso vizinho.

O governo Milei cortou diversos repasses às províncias, análogos argentinos aos estados do Brasil, alegando falta de recursos e dívidas não pagas pelas províncias com o governo federal. Os cortes podem ser ilustrados por uma marca da campanha de Milei, a motosserra, ou por uma frase de seu discurso de posse, “no hay plata”, não tem dinheiro. O governador de Chubut, Ignacio Torres, foi um dos que não recebeu bem a decisão e, embora seja do partido de Macri e de Patricia Bullrich, não é um aliado de Milei.

Torres ameaçou cortar o fornecimento de gás natural e de petróleo para Buenos Aires, o que geraria um pandemônio. Chubut, na Patagônia, é um dos pólos de hidrocarbonetos do país e local de nascimento da empresa YPF. Torres conseguiu uma vitória em primeira instância e afirmou querer dialogar com o governo federal. Outros governadores, como o kirchnerista Axel Kicillof, da província de Buenos Aires, onde vive 38% da população do país, afirmaram que levarão a questão à Suprema Corte de Justiça.

Kicillof busca ser presidenciável, o candidato da esquerda em no máximo dois pleitos presidenciais. Com isso em mente, fará de tudo para ser visto como o maior opositor de Milei na prática, daí sua decisão de organizar uma frente de governadores no Supremo. Um dos governadores que se juntou ao grupo de Kicillof, entretanto, é Rogelio Frigerio, de Entre Ríos, nome de direita e próximo a Macri. A atual crise mostra que o apoio a Milei dentro das trincheiras macristas não é incondicional, no mínimo.

Conflitos argentinos

A crise também evoca a História da formação da Argentina. Entre 1814 e 1880, o país passou por uma série de guerras civis. Embora nenhum conflito tenha esse nome de “guerra civil” foram doze conflitos intestinos, mais algumas batalhas e confrontos esporádicos. Alguns leitores podem até reparar na data inicial, 1814, e pensar que esses conflitos internos precedem a própria consolidação da independência. Exatamente, os argentinos lutavam contra a Espanha ao mesmo tempo em que lutavam entre si.

Após a Revolução de Maio, quando Buenos Aires estabeleceu sua junta governativa em 1810, foi travado o conflito entre a Liga de los Pueblos Libres, favoráveis à descentralização argentina, e as Províncias Unidas do Rio da Prata, centrada em Buenos Aires. É o início do processo de independência do Uruguai e, brevemente, as províncias de Tucumán e de Entre Rios declaram serem repúblicas independentes. Até a ascensão de Juan Manuel de Rosas, em 1829, a Argentina viverá em conflito, com outros nomes.

A Liga de los Pueblos Libres torna-se a base do Partido Federalista, enquanto os defensores de um governo centralizado forte serão os Unitários. O que se passou na Argentina não foi um processo exclusivo, mas, talvez, tenha sido um dos países onde mais intensamente forças centrípetas e centrífugas travaram conflitos armados pela disputa do modelo de Estado nacional a ser estabelecido. Existiam tanto a continuidade de disputas entre elites coloniais quanto também o contexto geográfico e histórico do país.

De um lado, os defensores de um governo centralizado forte tinham ao seu favor o fato de Buenos Aires ser o principal porto de toda a região, além do fato de que a maior população argentina vivia, e vive, na província de Buenos Aires. Do outro lado, os defensores de um governo pulverizado, chamado no país vizinho de federalismo, contavam com a vasta extensão de território e os diferentes pólos agropecuários, que conferiam força política e econômica, como Mendoza, Córdoba e Corrientes.

A disputa passa por uma trégua em 1829, com a ascensão de Juan Manuel de Rosas, um “federalista contraditório”. Ele foi governador de Buenos Aires de 1829 a 1832 e de 1835 a 1852, somando mais de vinte anos no poder. Naquele período, o governador de Buenos Aires era o líder internacionalmente reconhecido da Argentina. Em 1831 ele articula o Pacto Federal, que substitui as antigas Províncias Unidas pela Confederação Argentina, com autonomia para as províncias, mas deveres comuns.

Nesse período, o conflito intestino argentino afeta países vizinhos, ou se relaciona com outros conflitos, como a Guerra da Confederação, envolvendo Chile, Peru e Bolívia, e a Guerra Grande no Uruguai. O Brasil também se envolve nos combates uruguaios, algo ensinado no Brasil como “Guerra contra Oribe e Rosas”. Após a derrota de Rosas em mais uma guerra civil, Urquiza, governador de Entre Ríos, assume como primeiro presidente constitucional em 1854 e, em 1860, o país é reorganizado como república federal.

História se faz presente

O marco final desse processo de profunda instabilidade e conflito interno é a federalização de Buenos Aires, em 1880, com Nicolás Avellaneda, quando a província perde qualquer reivindicação à uma possível secessão. Mesmo essa quase formalidade deixa milhares de mortos, encerrando décadas de conflitos no país. O ponto dessa breve retrospectiva histórica é mostrar que a História argentina é profundamente marcada pelo choque entre Buenos Aires e as províncias.

Esse choque não ficou no passado. Não existe “botão de reset” na História. O entendimento das cortes da Constituição argentina, inclusive, é de que a existência das províncias precede o governo federal. Esse entendimento foi reforçado logo após a redemocratização do país, em 1987, em uma sentença da Suprema Corte argentina. Ao julgar uma disputa entre as províncias de La Pampa e de Mendoza pelas águas do rio Atuel, o Supremo reafirmou que as províncias são iguais e são precedentes.

Proporcionalmente falando, a caneta do presidente da Argentina possui menos poderes do que as dos presidentes dos EUA ou do Brasil. Milei foi eleito com diminuta base no pulverizado Congresso argentino e com poucos aliados nas províncias, nenhum sendo de seu partido. Caso ele continue querendo resolver todos os problemas da Argentina em apenas meses, com decretos e mudanças amplas e bruscas feitas a partir de Buenos Aires, cavará sua própria ruína política. A História argentina mostra isso.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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