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Um manifestante vestido como o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman (C), com sangue em suas mãos se junta ao protesto do lado de fora da embaixada saudita em Washington, exigindo justiça por desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi
Um manifestante vestido como o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman (C), com sangue em suas mãos se junta ao protesto do lado de fora da embaixada saudita em Washington, exigindo justiça por desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi| Foto:

A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista, um governo totalitário apoiado no petróleo e baseado no Islã. O país não tem legislativo e seu judiciário não admite júri popular e é baseado em leituras literais de textos corânicos. O poder executivo do governante é via decreto e os milhares de príncipes reais ocupam todos os postos de governo. O poder da família é tamanho ao ponto do nome do país ser mero indicativo de propriedade privada, a Arábia dos Saud. O país executa condenados por decapitação em público; e “condenados” não necessariamente significa criminoso, já que pessoas podem ser executadas por “bruxaria”.

Amigos de conveniência

É necessário apenas um pequeno parágrafo para mostrar como são contraditórias as relações entre diversos países ocidentais e a Arábia Saudita. Defender os direitos humanos mais básicos, transparência governamental e democracia não são temas populares no reino, onde regimes de trabalho similares à servidão são praticados. O petróleo que jorra facilmente no país, entretanto, faz dos Saud importantes na geopolítica desde a Segunda Guerra Mundial: óleo barato, de qualidade e facilmente distributível ao oeste e à leste. Os laços do patriarca Ibn Saud com o Ocidente foram cruciais para que ele consolidasse seu poder.

O governo saudita foi até um dos principais articuladores dos choques do petróleo, punição aos EUA e ao Ocidente, pela cooperação com Israel na guerra de 1973. Até hoje, os sauditas não reconhecem Israel oficialmente, embora canais de bastidores sejam intensos. Nada disso abalou as relações. Ao contrário, a Guerra Fria intensificava a aliança, já que o wahabismo sunita dos Saud era uma ótima ferramenta para a contenção de revoluções nacionalistas, como o Iraque de Saddam Hussein, ou socialistas, como o Afeganistão de 1979.

Paradoxalmente, a Arábia Saudita é a semente de Osama bin Laden e a al-Qaeda, dentre outros movimentos e grupos extremistas. Integrantes da família real saudita, alinhados ou não com o governo, financiaram tais grupos; talvez o uso do verbo no pretérito ainda não seja justificado. Alguns anos atrás, em um dos vários documentos vazados pelo WikiLeaks, a então secretária de Estado Hillary Clinton dizia que “todos sabem que eles financiam os extremistas”.   

A Revolução Islâmica do Irã, em 1979, aproximou ainda mais os sauditas do Ocidente, especialmente dos EUA. O petróleo iraniano deixou de ser uma possibilidade para os tanques de combustível ocidentais; mais que isso, era necessário conter uma expansão iraniana, lógica que perdura ainda hoje, 40 anos depois. Na década de 1980, os sauditas tornam-se compradores ávidos de armamentos dos EUA, intermediados pelo então chefe da CIA, George Bush, hoje chamado também de “Bush Pai”.

Infiéis em solo sagrado

Na virada para a década de 1990, ocorre a Guerra do Golfo. No Ocidente ela é mais lembrada como uma guerra que foi transmitida pela TV, que rendeu alguns filmes e colocou na mente das pessoas o vilão da década, o citado Saddam Hussein. Sua importância, entretanto, é muito maior, e seus efeitos ainda perduram. O enfraquecimento do Iraque como potência regional, a violência sectária entre xiitas e sunitas, o afastamento entre os países do Golfo e os palestinos, dentre outros. Principalmente, a aliança entre EUA e Saud.

As operações contra o Iraque de Saddam tinham mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em que os EUA lideraram uma coalizão internacional, sendo os protagonistas em 90% das ações. As forças dos EUA estava baseadas em solo saudita; soldados, suprimentos, bases aéreas. Mais que isso, a maior parte da operação foi custeada pelos sauditas. Não se trata de teoria da conspiração, como muitas vezes se vê em temas geopolíticos na internet, mas de algo bem documentado.

A presença de tropas ocidentais, “cruzados”, em solo árabe causou críticas na região; aqui, “árabe” é a essência, a península, onde estão as cidades sagradas de Meca e de Medina. Outros regimes e, principalmente, grupos extremistas acusavam a situação de ser uma profanação, uma heresia. Anos depois, aos gritos de “morte à América”, a al-Qaeda atacava duas embaixadas dos EUA na África; em 2001, as torres gêmeas em Nova Iorque.

Aliança contraditória

Além do regime saudita contrariar todos os valores democráticos e integrantes da família real contribuírem para o terrorismo, o país possui uma agressiva agenda externa. Financiou grupos que agiram na Síria (incluindo, possivelmente, o Daesh, conhecido como Estado Islâmico); busca isolar o Qatar do mundo, até em um sentido literal, com a construção de um canal; possui dezenas de mísseis balísticos de médio alcance de origem chinesa. E envolvimento com armas de destruição em massa.

Os sauditas foram os principais financiadores do programa nuclear paquistanês. Especula-se, embora sem provas cabais, de que seja uma nuclearização indireta. O Paquistão teria o motivo de desenvolver armas nucleares para contrapor a vizinha e rival Índia, potência nuclear desde a década de 1970. Já os sauditas, para serem hegemônicos no Golfo e contrapor as armas nucleares de Israel, nunca admitidas.   

Por nunca serem admitidas, causaria constrangimento e possível condenação de aliados um programa nuclear saudita. Então, teriam financiado as armas nucleares paquistanesas com um entendimento de que, se necessário, os sauditas terão acesso à tecnologia. O que é confirmado é que o reino domina a capacidade de produção de armas biológicas e de armas químicas. 

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Tais armas químicas foram possivelmente usadas no Iêmen, onde os sauditas lideram uma coalizão em apoio ao governo sunita, contra rebeldes xiitas apoiados pelo Irã. Dezenas de milhares de civis, muitos deles crianças, foram mortos na guerra, e isso não é hipérbole. Mais de 3 milhões de pessoas foram deslocadas, tornando-se refugiadas. E toda semana a imprensa repercute notícias de ataques sauditas no Iêmen.

Com tantas contradições, é espantoso a manutenção da aliança entre países ocidentais e os sauditas, ao ponto da primeira viagem internacional de Donald Trump como presidente dos EUA ter sido ao reino saudita, finalizada com a assinatura de fartos contratos bilionários para vendas de armamentos. Em todas essas décadas, houve pouca ou nenhuma distensão, mesmo em governos tidos como progressistas. Recentemente, alguns governos europeus cogitaram suspender as exportações de armas aos sauditas, porém, o dinheiro falou mais alto, como era de se esperar.

No último ano, o príncipe da coroa e de fato mandatário saudita Mohammed bin Salman, conhecido como MBS, fez tours de relações públicas pela Europa e pelos EUA. A ideia era transmitir que ele será um líder reformador, modernizador, que vai aproximar os sauditas do Ocidente e seu padrão de vida. Algumas dessas medidas foram a reintrodução de cinemas no país, proibidos por quase cinquenta anos, e a permissão para que mulheres possam dirigir automóveis, desde que autorizadas por um homem.

Voz dissidente

As ações, entretanto, estão na contramão. A mais recente e mais grave é a provável morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi. Residente nos EUA, Khashoggi escrevia no Washington Post e era a principal voz progressista e modernizadora saudita, ao ponto de ser banido de aparições em público pela monarquia em 2016. Obviamente, ele era ferrenho crítico do governo.

Os verbos no pretérito, nesse caso, são dúbios. Ele está desaparecido, provavelmente morto. No dia 2 de outubro, Khashoggi foi ao consulado saudita em Istambul para obter um documento para se casar. No dia seguinte, após sua noiva informar a polícia turca do desaparecimento, o governo saudita disse que ele já havia deixado o consulado. No dia 7, autoridades policiais turcas afirmaram que tinham imagens de câmeras que mostravam que ele nunca saiu do consulado.

Mais ainda, disseram que ele foi sequestrado, torturado, morto e seu corpo foi esquartejado por um esquadrão de quinze militares sauditas. No dia do seu desaparecimento, todos os funcionários turcos do consulado receberam uma folga inesperada. Na imprensa internacional existe a acusação de que MBS ordenou ao chefe da inteligência saudita que cuidasse da execução da voz dissidente.     

Dias depois, as autoridades turcas diminuíram o tom, certamente para não prejudicar as relações bilaterais entre os países; o mandatário turco, Erdogan, entretanto, mantém a postura de exigor provas das autoridades sauditas de que o jornalista saiu vivo do consulado. O governo saudita, por óbvio, nega tudo que aconteceu. Em compensação, numa proporção quase inédita, o tema repercute do outro lado do Atlântico.

Autoridades dos EUA estão cobrando providências e esclarecimentos aos sauditas. Donald Trump se disse “preocupado” com o provável assassinato, o secretário de Estado Mike Pompeo pediu por uma investigação firme e “transparente”, adjetivo raramente aplicado aos sauditas. A porta-voz da Casa Branca Sarah Huckabee Sanders disse que autoridades dos EUA estão em “contato direto” com o caso.

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Principalmente, senadores do Comitê de Relações Exteriores, o presidente Bob Corker, republicano, e o líder democrata do comitê, Robert Menendez. Eles enviaram uma carta ao presidente Trump, assinada por outros senadores de ambos os partidos. A carta invoca o Magnitsky Act, dando 120 dias para a presidência definir se indivíduos devem ser alvos de sanções dos EUA, por cometerem atos de violação de direitos humanos.  

O republicano Corker, inclusive, é o principal crítico aos contratos bélicos assinados por Trump. E o Magnitsky Act foi criado em 2012, na presidência Obama, para impor sanções contra indivíduos russos por violações de direitos humanos; seu nome vêm do contador russo Sergei Magnitsky, morto numa prisão russa em 2009; o principal defensor do ato foi Bill Browder, empresário crítico de Putin e frequentemente evocado em conspirações anti-semitas sobre a influência de magnatas judeus pelo mundo.

O Magnitsky Act permite ao Congresso dos EUA impor sanções e investigações sem passar por uma complicada, demorada e equilibrada votação; mais que isso, faz com que o Executivo tenha que ouvir o Legislativo em temas internacionais. Isto sem mencionar outra lei que pode afetar tais relações, a Justice Against Sponsors of Terrorism Act (JASTA), que autoriza que cidadãos dos EUA vítimas de terrorismo, ou seus parentes, possam processar os patrocinadores de ações terroristas.

Trump já se disse preocupado, e senadores afirmaram que o episódio pode ser um “game changer” nas relações. Trata-se do provável assassinato de um jornalista opositor que residia nos EUA, pelo regime saudita, em solo de um terceiro país, a Turquia. Após décadas de contradições, pode ser esse o episódio que finalmente estremeça essas relações. Petróleo pode ser obtido em outros lugares e os bilionários e grandiosos projetos de MBS podem ser apenas fachada do futuro monarca que, de reformador, pode ter muito pouco.

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