Ocorreram duas tentativas de golpes de Estado na África Ocidental nas duas últimas semanas. Ou, ao menos, é isso que se alega. A região passa por instabilidade política nos últimos anos, consequência de diversos fatores, tanto regionais quanto locais de cada país. Em um contexto mundial já instável e marcado pela disputa por influência entre as grandes potências, notícias de mais golpes de Estado são tanto preocupantes quanto motivadoras de uma saudável dose de ceticismo.
Recapitulando, tivemos quatro golpes de Estado liderados por militares na África Ocidental nos últimos três anos. Mali, Guiné, Burkina Faso e Níger. O caso do Mali envolve dois golpes de Estado, um liderado por generais, em 2020, e outro liderado por capitães e oficiais intermediários, contra os generais, em 2021. Esses episódios foram temas de colunas aqui em nosso espaço de política internacional, quando abordamos esse fenômeno do “Tenentismo africano”.
Burkina Faso e Guiné também são casos de golpes liderados por jovens oficiais militares, enquanto o Níger possui características diferentes, com uma típica quartelada liderada por um general denunciado por corrupção que temia pelo próprio destino. Ainda podemos citar os casos do Sudão, em 2021, e do Gabão, em 2023. No primeiro caso, os generais retomaram o poder após a revolução popular que derrubou o ex-ditador Omar al-Bashir. No segundo, o comandante da guarda presidencial derrubou seu ex-ditador.
Salvo o caso sudanês, todos esses países possuem uma característica em comum: foram parte do império colonial francês. E, após todos esses golpes, sejam movidos por jovens oficiais, sejam os chefiados por generais, os novos governos intensificaram o distanciamento da França e do chamado Ocidente, buscando aprofundar parcerias com países como Rússia, China, Turquia e as monarquias árabes do golfo. Novos parceiros comerciais, menos pressão política interna.
Serra Leoa
No último dia 26 de novembro, grupos armados atacaram prisões e quartéis em Freetown, capital de Serra Leoa. Inicialmente, os grupos conseguiram libertar prisioneiros, incluindo supostos prisioneiros políticos e militares presos por corrupção. Depois do ataque contra as prisões, os grupos tentaram atacar alguns quartéis. Segundo o governo, eles buscavam capturar armamento pesado. Foram derrotados, com três deles mortos e 57 presos. Um civil foi morto e dezesseis militares morreram em defesa do governo.
O presidente Julius Maada Bio instituiu um toque de recolher e afirmou que o ocorrido foi uma tentativa de golpe de Estado. Um dos presos foi o ex-militar Amadu Koita, homem de confiança do ex-presidente Ernest Bai Koroma e chefe de sua segurança. Koroma foi presidente entre 2007 e 2018, quando foi sucedido justamente pelo atual presidente Maada Bio. Os dois homens são rivais políticos por décadas, mas, em 2018, protagonizaram a segunda transferência de poder pacífica para um oposicionista na História do país.
Serra Leoa tornou-se uma república em 1971, dez anos depois da independência nominal do Reino Unido. Nesses cinquenta e dois anos, é uma democracia apenas desde 1997, embora um golpe de Estado tenha tido um breve sucesso naquele ano. O ex-presidente Koroma é líder do partido Congresso de Todo o Povo, que governou por boa parte desse período. Curiosamente, embora seja um partido de esquerda e africanista, era aliado do Reino Unido e dos EUA na Guerra Fria.
Já Maada Bio lidera o Partido Popular de Serra Leoa, de centro, com elementos conservadores. Ex-general, ele foi líder de um dos golpes militares da década de 1990 e, depois, se exilou nos EUA, seu principal aliado no poder, junto da ex-metrópole do Reino Unido. Ele foi reeleito no último mês de junho, em um pleito que foi classificado pelos observadores da União Europeia como “inconsistente”. As possíveis irregularidades do pleito podem ser utilizadas como argumento pelo levante armado.
Principalmente, não é absurdo especular que, além de disputa interna, também exista um elemento externo. Militares descontentes que desejam uma guinada, distanciando-se do chamado Ocidente e se aproximando da China, por exemplo. Ao mesmo tempo, entretanto, é interessante frisar que mesmo o “pró-Ocidente” Maada Bio fomenta boas relações com a China. Em 2020, por exemplo, Serra Leoa foi um dos 53 países que apoiaram a China e sua nova lei de segurança nacional de Hong Kong no âmbito das Nações Unidas.
Guiné-Bissau
Um pouco mais ao norte, na noite do dia 30 de novembro para o dia primeiro de dezembro, foram relatados confrontos em Bissau, capital de Guiné-Bissau, um país que integra a comunidade lusófona junto ao Brasil. A “receita” foi muito similar ao ocorrido em Serra Leoa: ataques contra prisões e, depois, contra quartéis. Na manhã do dia 30, os então Ministro das Finanças, Souleiman Seidi, e o Secretário do Tesouro, Antonio Monteiro, foram detidos por suspeita de corrupção e desvio de dez milhões de dólares.
A prisão foi ordenada por um procurador nomeado pelo presidente e a oposição afirmou que se tratava, na verdade, de uma tentativa de esconder evidências de corrupção cometida pelo governo. A oposição é liderada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, o PAIGC, socialista e africanista, enquanto o governo do presidente Umaro Sissoco Embaló é liderado pelo Movimento para Alternância Democrática, conhecido como G15, um partido de centro formado de dissidências do PAIGC.
Após a prisão dos dois ministros, membros da Guarda Nacional armados invadiram a delegacia onde eles estavam detidos e os libertaram. Depois de uma escaramuça com tropas do governo, se retiraram para um quartel. Ocorreram combates entre a Guarda Nacional, uma espécie de “polícia militar” do país, e a guarda presidencial, a única unidade permanente do exército. O comandante da Guarda Nacional, Victor Tchongo, foi preso, e o número de vítimas não foi divulgado.
Não é a primeira vez que Embaló, ele mesmo um ex-oficial do exército, sofre uma tentativa de golpe. Ano passado, onze pessoas morreram em uma dessas tentativas. Desde a independência de Portugal, em 1974, Guiné-Bissau teve pelo menos dez tentativas ou golpes de Estado, e apenas um único presidente democraticamente eleito completou um mandato. Tal como no ano passado, Embaló aproveitou a oportunidade para dissolver o parlamento, alegando que deputados da oposição que tramaram a quartelada.
A oposição criticou a decisão, afirmando que seria um ato ilegal, já que, pela constituição, a legislatura não pode ser dissolvida nos primeiros doze meses após uma eleição, realizada em junho de 2023. No caso da Guiné-Bissau, entretanto, é difícil dizer que existiria algum componente externo nesse golpe. A China é, de longe, seu principal parceiro econômico. Os EUA não possuem sequer embaixada residente no país, acumulando com a representação em Dacar, no Senegal.
Mesmo sem esse componente, as duas situações são preocupantes, podendo trazer mais instabilidade à uma região que, infelizmente, já está se tornando acostumada à instabilidade. Além disso, as denúncias de golpes que são acompanhadas de poucas informações e seguidas de atos como a dissolução de um parlamento parecem ser bastante convenientes aos governos do momento, que passam longe de serem merecedores da confiança. Seja local, seja global.
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