Na última quarta-feira, dia 29 de novembro, faleceu Henry Kissinger, aos cem anos de idade, uma das pessoas de maior impacto na política internacional nos últimos sessenta anos. Sua carreira une importante bibliografia e participação ativa em alguns marcos históricos recentes. A mesma carreira, entretanto, também carrega um legado sangrento e cínico, que abriu caminho para um contexto de desconfiança generalizada e do uso da força. Não é difícil entender por que Kissinger foi tão detestado.
Nesta coluna não vamos fazer uma retrospectiva de toda a vida de Henry Kissinger, desde sua infância na Alemanha, com o nome de Heinz Alfred Kissinger. Vamos focar em sua atuação nas relações internacionais e na política internacional, como acadêmico, como analista e como político. O Kissinger acadêmico, inclusive, é leitura obrigatória em faculdades e cursos da área. Seu livro Diplomacia é um manual obrigatório para esse público e para candidatos à carreira diplomática.
Termos como “bonzinho” ou “malvado” cabem em Hollywood, não na política internacional, com raras exceções. Uma delas é Kissinger, que foi um gênio do mal. Um profundo conhecedor e analista de seu ofício, mas que usou esse conhecimento de forma absolutamente perversa e imoral. Se o adágio prega que a política internacional é amoral e que os Estados não possuem amigos, mas interesses, Kissinger levou isso além de toda e qualquer consequência.
Visão de mundo
Seu doutorado em Harvard tratou do Congresso de Viena de 1815, quando as potências europeias refizeram o mapa do continente após as Guerras Napoleônicas e se uniram para combater o legado da Revolução Francesa. Também se uniram para evitar uma nova revolução. Sob os preceitos de “Legitimidade, Restauração e Solidariedade”, as cinco potências europeias de então criaram uma ordem internacional centrada no interesse das potências e na concertação desses interesses.
Para esse Concerto Europeu ser colocado em prática, a autodeterminação dos povos, as pautas locais, as reformas sociais e os Estados mais fracos eram solapados. O direito à intervenção era quase sagrado. Foi nesse mundo que Kissinger se inspirou e foi essa a lente que ele usou para ver o seu mundo, em sua época. Para Kissinger, o mundo era um grande tabuleiro de xadrez, figura de linguagem até comum quando se fala de política internacional. A diferença é que Kissinger levava essa figura de linguagem como literal.
Em sua Realpolitik anabolizada, Kissinger não via pessoas, via peões, que podiam ser sacrificados ao bel prazer da estratégia do momento que servisse ao seu rei, no caso, os EUA. Se os peões fossem asiáticos ou latino-americanos, então, o sacrifício era feito sem pensar duas vezes. Daí o apoio a golpes de Estado, massacres e boas relações com governos ditatoriais que proliferaram sob a batuta de Kissinger. Um homem que se tornou mais poderoso e influente do que qualquer cargo pode definir.
Kissinger, nascido cidadão alemão, não poderia sequer ser presidente dos EUA, por exemplo. Nunca ocupou cargo eletivo. Oficialmente, foi Conselheiro de Segurança Nacional de 1969 a 1975 e Secretário de Estado de 1973 a 1977. Esses cargos e esses períodos não definem sua influência, que ecoou até recentemente. No último mês de julho, já centenário, Kissinger visitou a China e conversou com Xi Jinping em meio ao estremecer de relações entre as duas potências.
China e intervenções
As relações com a China talvez tenham sido o maior feito da carreira de Kissinger. Em meio à Guerra Fria, Kissinger aproveitou o racha sino-soviético, encontrou-se secretamente com Mao Tsé-tung e costurou o futuro encontro entre ele e o presidente dos EUA, Richard Nixon. Isso abriu caminho para a normalização de relações entre Washington e Pequim, o afastamento de Taipei e a futura admissão da China comunista como a representante chinesa na ONU, incluindo o assento permanente no Conselho de Segurança.
Esse importante momento definidor da Guerra Fria leva a um aumento do intercâmbio comercial entre China e Estados Unidos, que depois será aproveitado por Deng Xiaoping como parte do desenvolvimento econômico chinês. Não é à toa que a nota de pesar assinada por Xi Jinping foi mais simpática ao falecido do que até mesmo a nota da Casa Branca, o Estado que Kissinger serviu. E cujo serviço iniciou uma carreira de consultor que o deixou rico na casa das centenas de milhões de dólares.
Ao mesmo tempo, podemos fazer uma lista de outros eventos, sem entrar em muitos detalhes, começando pelo fato de que Kissinger orquestrou o golpe de Estado no Chile em 1973. Deu total respaldo à ditadura militar da Indonésia, incluindo a execução do Genocídio Timorense iniciado em 1975. Apoiou o Paquistão na repressão aos independentistas bengalis, que resultou no Genocídio de Bangladesh, evento tão traumático que motivou o primeiro grande concerto beneficente da História, organizado por George Harrison.
Kissinger orientou o apoio a diversos governos autoritários e corruptos pelo mundo, como o de Mobutu no Zaire, atual República Democrática do Congo. Apoiou a invasão turca do Chipre em 1974, estourando uma crise dentro da aliança da OTAN e originando um conflito congelado que dura até hoje, tudo em nome da manutenção da primazia dos EUA. Suas ações deliberadamente prolongaram a Guerra do Vietnã e sua política levou a guerra aos vizinhos Laos e Camboja, os dois países mais bombardeados da História.
O falecido chef e escritor Anthony Bourdain escreveu em 2001: “Depois de visitar o Camboja, você nunca mais vai parar de querer espancar Henry Kissinger até a morte com as próprias mãos. Você nunca mais será capaz de abrir um jornal e ler sobre aquele canalha traiçoeiro, prevaricador e assassino, sentado para uma conversa agradável com Charlie Rose ou participando de algum evento black-tie para uma nova revista, sem engasgar. Testemunhe o que Henry fez no Camboja – os frutos do seu gênio como estadista – e nunca compreenderá porque é que ele não está sentado no banco dos réus em Haia, ao lado de Milošević".
O saldo de todas essas ações de Kissinger foram dezenas de milhões de mortes, no que é um brevíssimo resumo de seu currículo. Outro saldo foi um dos mais criticados e cínicos Nobel da Paz da História, em 1973, literalmente semanas depois do golpe de Pinochet orquestrado por Kissinger. O então Secretário de Estado foi laureado pela “paz no Vietnã”. Seu homólogo vietnamita recusou o prêmio e, nem dois anos depois, a “paz” foi encerrada e o Vietnã do Sul foi anexado pelo Norte.
Política de contenção
Se Kissinger olhava para o mundo com a lente de uma ultra-Realpolitik que explicamos, o que motivava suas ações eram uma crença e um objetivo. A crença era a da superioridade dos EUA e de alguns de seus aliados do dito Ocidente. Como muitos imigrantes de sua geração, Kissinger tornou-se um ferrenho defensor do excepcionalismo dos EUA, uma crença de “West versus the Rest”, o “Ocidente versus o Resto”. Latino-americanos, asiáticos, em linhas gerais, seriam inferiores.
Seu objetivo era a manutenção da posição de predomínio dos EUA. Na década de 1970, o país era uma das duas superpotências no mundo. A maior economia, uma potência militar com aliados de peso. Para Kissinger, a função do governo era fazer de tudo para impedir que essa posição seja ameaçada. Ou seja, a política externa dos Estados Unidos, sob a influência de Kissinger, passará a ser muito pouco propositiva e passará a ser uma política externa defensiva, de contenção.
Se existe uma ameaça aos interesses dos EUA, essa ameaça deve ser contida independente do custo, especialmente em vidas dos outros. Sobre o Brasil, por exemplo, e seu desenvolvimento econômico no pós-Segunda Guerra Mundial, existe uma frase atribuída a ele: “o governo dos Estados Unidos nunca permitirá um Japão ao sul do Equador”. Ou seja, um concorrente econômico e político, já que o Japão, por muito tempo, foi o principal antagonista dos EUA na bacia do Pacífico.
Golpes militares, intervenções políticas, desestabilização, desinformação, boicote econômico, vale todo tipo de ação unilateral para manter essa posição. O que será feito depois? Não importa, o importante é conter as ameaças à posição hegemônica, é manter o status quo em nome dos interesses do Estado. Construir algo posterior ou de longo prazo não “vem ao caso”. A consequência dessa política externa pouco propositiva são décadas dessas intervenções, incluindo, por exemplo, a invasão do Iraque em 2003.
A invasão do Iraque, defendida ferrenhamente por Kissinger, é um ótimo exemplo dessa falta de pensamento de longo prazo inerente à uma estratégia de contenção. Em pouco mais de dez anos após a invasão absolutamente ilegal, o Iraque era quase uma terra de ninguém, com boa parte de seu território dominado pelo Estado Islâmico e sem instituições. John Bolton, o mais simbólico falcão da política externa dos EUA nas últimas duas décadas, talvez não existisse sem um Kissinger.
Legado
Isso é talvez o mais importante de se entender sobre a maneira de Kissinger ver o mundo. Ela deixou um legado que não se resume ao impacto dos eventos em que ele teve participação, mas também um legado de defensores dessa exata mesma postura no mundo de hoje. Para Kissinger, “Might makes right”, “Poder dá o direito”. E os exemplos citados aqui podem fazer alguém achar que Kissinger era, na verdade, orientado por um sentimento de anticomunismo e, por isso, tais ações teriam sim alguma justificativa moral.
Essa hipótese cai por terra quando se vê, por exemplo, que Kissinger apoiou as ações do Estado chinês perante os protestos da Praça da Paz Celestial em 1989 e perante os protestos em Hong Kong em 2019, que deixaram milhares de mortos e de presos. Outro exemplo recente é que Kissinger defendeu, em mais de uma ocasião, a necessidade de concessões territoriais pela Ucrânia para apaziguar a Rússia. Lembremos: para ele, o que existe são as potências, o restante é ou tabuleiro ou um peão de sacrifício.
Em suma, não é difícil entender porque Kissinger era tão odiado. Uma famosa revista cultural dos EUA noticiou sua morte com as palavras: “Henry Kissinger, criminoso de guerra amado pela classe dominante dos EUA, finalmente morre.” Juan Gabriel Valdés, embaixador do Chile nos EUA, escreveu em uma rede social que Kissinger foi um homem “cujo brilhantismo histórico nunca foi capaz de esconder a sua profunda miséria moral”. Sem falar nos milhões de mortos, mesmo a História não sendo um placar de videogame.
Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista o fato de que Kissinger era um erudito, dotado de enorme capacidade intelectual e uma pessoa de extrema capacidade política. E é justamente por isso que ele teve um impacto destrutivo tão grande. Ele não era um simplório, mas dono de uma mente extremamente capaz e de enorme poder de persuasão. Gênios nem sempre são benevolentes, e nem todo malfeitor é um ignorante. Henry Kissinger e seu legado maldito são a prova disso.
P.S: Esclareço aos leitores que essa coluna deveria ter sido publicada na última sexta-feira, dia Primeiro de dezembro, mas, por um contratempo pessoal, saiu com atraso. Peço desculpas e conto com a compreensão de vocês.
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