• Carregando...
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em Buenos Aires, no dia 23 de janeiro de 2023
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em Buenos Aires, no dia 23 de janeiro de 2023| Foto: Ricardo Stuckert/PR

Lula está na Argentina para a VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos e, antes do evento, foi recebido de maneira bilateral pelo presidente argentino Alberto Fernández. Um tema que dominou o noticiário foi o da adoção de uma moeda comum entre os dois países, uma proposta que possui méritos, deméritos e, principalmente, obstáculos.

A proposta é de uma moeda comum “de circulação sul-americana”, cuja intenção é “no longo prazo”, “com vistas a potencializar o comércio e a integração produtiva regional e aumentar a resiliência a choques internacionais.”. Isso está no artigo 20 da declaração conjunta dos dois presidentes. Ou seja, não seria um projeto imediato e o foco é o comércio regional entre países sul-americanos.

Cabe um primeiro esclarecimento. Uma moeda comum não é a mesma coisa que uma moeda única. Muitas pessoas, por ignorância ou má-fé, compararam a proposta com uma espécie de euro sul-americano. O euro é a moeda única que diversos países adotaram, depois de um processo de duas décadas, iniciado em 1979 e que culminou na circulação do Euro em 2002.

Uma moeda comum é uma moeda utilizada por dois ou mais países em paralelo às suas próprias moedas, e sequer precisa ser circulante. Ela pode ser uma moeda que sirva apenas como um parâmetro de troca e de valores, para facilitar o comércio. Apelando para a memória do leitor, tal como foi a Unidade Real de Valor, índice que existiu por alguns meses em conjunto ao cruzeiro real, a moeda circulante.

Outra comparação é com os Direitos Especiais de Saque, o SDR, do Fundo Monetário Internacional, que, embora não seja uma moeda, calcula as taxas de juros e as taxas de câmbio para conversão das moedas que fazem parte da cesta do FMI. Em suma, não se trata de adotar uma moeda única com a Argentina, nem de abandonar o real ou abrir mão da soberania monetária, embora a confusão seja fruto da falta de precisão do termo.

Mundo pós-2008

Fernando Haddad, ministro da Fazenda, disse, em Buenos Aires, inclusive que não é viável a criação de uma moeda única entre os dois países. A proposta de uma moeda comum para facilitar e incentivar o comércio entre Brasil e Argentina faz parte de uma tendência cada vez mais forte no mundo pós-2008, o de desenvolver comércio com moedas nacionais que não sejam o dólar e o euro.

Isso permite que países em desenvolvimento possam focar suas reservas nessas moedas para outros compromissos, além de evitarem ingerências dos grandes centros econômicos. Nos últimos anos, algumas grandes economias expandiram seu comércio em moedas nacionais. Por exemplo, Índia e Rússia celebraram acordo para fazerem comércio em rublos e em rúpias, após as sanções pós-invasão da Ucrânia pela Rússia.

A questão é que, como os exemplos dados mostram, a adoção de uma moeda comum fica quase redundante, não é uma necessidade. O Banco Central do Brasil já possui o Sistema de Pagamentos em Moeda Local, SML, que foi inclusive mencionado na mesma declaração presidencial conjunta de Lula e Fernández, pedindo por sua ampliação como instrumento “que aumente e facilite o comércio sem entraves”.

A moeda comum aprofunda esse mecanismo, mas não é uma necessidade, é uma escolha criar uma nova unidade de conta. Como qualquer escolha, impõe benefícios e riscos. Alguns dos benefícios são, para o Brasil, o fato de que a Argentina é um dos principais destinos de exportações brasileiras e, principalmente, exportações de manufaturas e produtos de maior valor agregado.

Aprofundar essa relação seria extremamente benéfico para a economia brasileira. O futuro também contém possibilidades, como a compra de gás natural explorado na Argentina, diminuindo a dependência do gás boliviano. Grandes economias conseguem até mesmo exportar inflação em momentos de maior crise, o que não necessariamente seria o caso, mas é sempre um fenômeno internacional interessante.

Riscos

Por outro lado, os riscos são muitos. Um dos motivos da intensificação do uso de moedas nacionais pela Argentina se dá pela escassez de dólares na Argentina, moeda que provavelmente serviria como parâmetro de arbitragem no uso de moedas domésticas. O país está envolto no maior acordo da história do FMI, sua inflação em muito supera a brasileira no momento.

Sequer é possível determinar com precisão o valor do peso argentino, já que o país possui múltiplas cotações de conversão com o dólar. Principalmente, como nossos leitores já sabem, trata-se de ano eleitoral na Argentina. Esse é o maior obstáculo. Um compromisso como o proposto requer anos de tratativas e precisa ser visto como política de Estado, sem ser sequestrado pelo jogo das urnas.

Caso a proposta de uma moeda única seja levada adiante, será com o governo eleito, que não necessariamente será o de Fernández. Até lá, e durante esse processo, é mais interessante a concertação e o aprofundamento dos mecanismos já existentes, com a resolução de questões como o possível acordo entre Uruguai e China e o engavetado acordo entre Mercosul e União Europeia.

Infelizmente, a realidade de nossa região latino-americana é a de não valorizar temas de integração regional. Sejam por razões ideológicas, como a suspeição de uma “Ursal”, por desconfianças históricas entre países rivais ou por motivos eleitorais. Em março de 2019 falamos aqui em nosso espaço como a postura do governo Bolsonaro era prejudicial nesse sentido, de perpetuar a dança das sopas de letrinhas da América Latina.

No lugar de consolidar e adequar o que já existe, se busca sempre criar algo novo, uma panaceia do momento. Uma moeda comum entre Brasil e Argentina pode ser benéfica, quem sabe abrindo caminho para uma futura moeda única sul-americana. Essa realidade, entretanto, está longe, e precisa ser trabalhada. Com constância e perenidade. Até lá, utilizando o real e o peso mesmo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]