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O presidente dos EUA, Joe Biden, antes de encontro com o secretário geral da Otan, Jens Stoltenberg, durante cúpula dos países da aliança em Bruxelas, 14 de junho
O presidente dos EUA, Joe Biden, antes de encontro com o secretário geral da Otan, Jens Stoltenberg, durante cúpula dos países da aliança em Bruxelas, 14 de junho| Foto: EFE/EPA/STEPHANIE LECOCQ / POOL

Após seis meses de gestão Biden, tivemos uma clivagem clara na política externa do atual presidente dos EUA em relação ao seu antecessor. Clara e, do ponto de vista de seu país, potencialmente benéfica. Enquanto Donald Trump flertou com alienar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e mudar bruscamente o foco dos EUA para a direção da China, Biden está conseguindo fazer com que a aliança militar como um todo inicie um processo de mudança de rota, rumo às águas do Mar do Sul da China.

No último 14 de junho, em Bruxelas, ocorreu a 31ª cúpula de chefes de governo e de Estado da Otan. A capital belga, além de sediar diversas instituições da União Europeia, também é sede do secretariado-geral da Otan. Todos os trinta países integrantes da organização estavam representados por seus mandatários máximos, e foi o primeiro evento desse tipo com Biden como presidente. Embora os principais debates da cúpula ainda tenham girado em torno da Rússia, a China é um foco crescente.

No comunicado publicado após o encontro, disponível online em vários idiomas (infelizmente, o português não é um deles), a China ocupa um espaço inédito. Não apenas em volume, mas também no tom incisivo da nota. São dois artigos exclusivamente sobre a potência asiática, além da citação no terceiro, que enumera os exemplos de “ameaças multifacetadas, competição sistêmica vindas de poderes assertivos e autoritários, bem como crescentes desafios de segurança para nossos países e nossos cidadãos em todas as direções estratégicas.”

Declaração

Nesses exemplos, estão citados que “a influência crescente da China e suas políticas exteriores podem apresentar desafios que precisamos enfrentar juntos como uma Aliança” e que “lidaremos com a China com o objetivo de defender os interesses de segurança da Aliança”. Parecem termos vagos, pouco assertivos, mas o discurso fica mais nítido e explícito mais adiante, nos trechos 55 e 56, que a coluna traduz na íntegra, com algumas observações, para os leitores que eventualmente não queiram ler o documento integral.

“55. As ambições declaradas e o comportamento assertivo da China apresentam desafios sistêmicos à ordem internacional baseada em regras e a áreas relevantes para a segurança da Aliança. Estamos preocupados com as políticas coercivas que contrastam com os valores fundamentais consagrados no Tratado de Washington [observação: esse é o documento que funda a OTAN]. A China está expandindo rapidamente seu arsenal nuclear com mais ogivas e um número maior de sistemas sofisticados de lançamento para estabelecer uma tríade nuclear [observação: tríade nuclear é a capacidade de atacar outro país com ogivas nucleares via mísseis balísticos intercontinentais, mísseis balísticos submarinos e por aviões. Na prática, a China já detém a capacidade de tríade nuclear, o que garante uma retaliação caso sofra um primeiro ataque nuclear]. A China é opaca na implementação de sua modernização militar e sua estratégia de fusão civil-militar é declarada publicamente. Também está cooperando militarmente com a Rússia, inclusive por meio da participação em exercícios russos na região euro-atlântica. Continuamos preocupados com a frequente falta de transparência e uso de desinformação pela China. Apelamos à China para que cumpra os seus compromissos internacionais e atue com responsabilidade no sistema internacional, incluindo nos domínios espacial, cibernético e marítimo, de acordo com o seu papel de grande potência.”.

Ficam claras as denúncias de uma escalada armamentista por parte de Pequim. A citação aos exercícios conjuntos com a Rússia servem também para colaborar na justificativa da menção aos chineses no documento, com uma argumentação de que a China que estaria agindo na esfera da Otan, o que justifica e prontifica essa resposta e essa categorização da China como ameaça. O artigo seguinte segue:

“56. A Otan mantém um diálogo construtivo com a China sempre que possível. Com base em nossos interesses, acolhemos oportunidades de engajamento com a China em áreas de relevância para a Aliança e em desafios comuns, como as mudanças climáticas. Há valor no intercâmbio de informações para as respectivas políticas e atividades, para aumentar a conscientização e para discutir possíveis divergências. Os aliados exortam a China a se engajar de forma significativa no diálogo, na construção de confiança e de medidas de transparência em relação a suas capacidades e doutrinas nucleares. A transparência e a compreensão recíprocas beneficiariam tanto a Otan como a China.”.

Significados

Ou seja, a mão que bate é a mão que assopra. A crítica e a acusação estão feitas, mas a Otan também estaria supostamente disposta a dialogar e engajar com a China. É interessante notar que, por duas vezes, é cobrada uma transparência sobre a China em relação às suas capacidades e doutrinas nucleares. Enquanto EUA e Rússia estão ligados por tratados que garantem um certo grau de fiscalização mútua, a China está fora desses mecanismos.

Também é importante lembrar ao leitor que o programa nuclear chinês é bastante reduzido comparado ao das duas superpotências da Guerra Fria, mas não é desprezível. Muito provavelmente algo na casa das 300 ogivas nucleares, número próximo ao francês e inferior ao britânico. Não existem informações públicas e a maioria das instalações nucleares bélicas da China são subterrâneas. O documento acaba sendo, também, uma chamada aos chineses para se sentarem na mesa de negociação nuclear.

Nesse caso, é improvável que aconteça no curto prazo, por um simples motivo: a China não teria muito a ganhar. Hoje, é mais importante para os EUA ter informações sobre o programa nuclear chinês do que o contrário. E obviamente o tom do documento não foi bem recebido pela China. A representação chinesa na União Europeia emitiu uma nota em que "a China pede para que a Otan veja o seu desenvolvimento de uma maneira racional, pare de exagerar de qualquer forma a chamada 'ameaça da China' e pare de usar os interesses e os direitos legítimos da China como desculpa para manipular a política do bloco, criar confronto e alimentar a competição.".

Mesmo sem sabermos quais os eventuais resultados, a nota é uma vitória do governo Biden, que contrasta sobremaneira com a política de Trump perante a Otan. Em 2019, Trump disse que o Canadá era “delinquente” na aliança, cobrando maiores gastos militares, e que a França “poderia sair” da Otan, respondendo às críticas de Macron, e foi zombado por outros líderes europeus num vídeo que “vazou”, causando o abandono da cúpula pelo presidente dos EUA.

No ano anterior, Trump ameaçou não assinar o documento final e criticou as relações entre Alemanha e Rússia. Em 2017, Trump pressionou bastante pelo aumento dos gastos em defesa pelos países europeus, motivando iniciativas comuns europeias de defesa, fora da moldura da Otan. E, embora alguns países tenham aumentado seus gastos militares, as relações no Atlântico norte ficaram azedas, ao ponto de considerarem uma reeleição de Trump um ponto de inflexão no histórico da aliança. Com uma postura bastante distinta, Biden trouxe a Otan para a política dos EUA, direcionada para o Indo-Pacífico. Um direcionamento que ganhou força com Trump e é mantido por Biden, de forma talvez mais incisiva. Justamente por trazer consigo os aliados dos EUA.

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