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William Ruto, atual presidente do Quênia.
William Ruto, atual presidente do Quênia.| Foto: DEAN CALMA/Wikimidia

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou nesta segunda-feira uma nova missão multinacional para o Haiti. Foram meses de negociações entre alguns países do CSNU e a missão foi aprovada por treze votos a zero, com as abstenções de China e Rússia. Seis anos depois do fim da MINUSTAH, a missão da ONU cujo componente militar foi liderado pelo Brasil, essa nova missão da ONU corre o risco de repetir apenas os erros e problemas da missão anterior.

O Haiti vive uma catástrofe, sem dúvida nenhuma. Segundo estimativas da ONU, cerca de metade da população necessita de assistência humanitária. São cinco milhões de pessoas afetadas, mais duzentos mil deslocados internos e três mil mortos até agora em 2023. São quase três milhões de pessoas na diáspora haitiana. Algumas regiões do país são controladas totalmente pelas gangues. A mais poderosa delas é a G9, "Forças Revolucionárias da Família e Aliados do G9".

O grupo é liderado pelo ex-policial Jimmy Chérizier, apelidado de “Barbecue”. A G9 é uma das principais responsáveis pelos sequestros de pessoas, especialmente estrangeiros, para extorsões e pedidos de resgate. Além da violência, o país sofre com escassez de alimentos e de combustível, ainda padece das consequências do devastador terremoto de 2010 e não possui um governo legítimo e endossado pela população. A crise política foi agravada pelo assassinato de Jovenel Moïse em julho de 2021.

Moïse foi assassinado por mercenários colombianos. Mesmo mais de dois anos depois, ainda não se sabe o mandante. Provavelmente foram as lideranças políticas ligadas ao narcotráfico. Ele havia sido eleito em novembro de 2016, a terceira eleição pela qual o país passou em treze meses, em pleitos marcados por uma série de acusações de fraudes, recontagens e, principalmente, pela pressa da MINUSTAH em empossar algum governo e encerrar suas atividades, prorrogadas anualmente entre 2010 e 2017.

Crise profunda

Ou seja, a crise atual do Haiti tem muito mais elementos e é muito mais profunda do que uma mera crise de segurança pública, mesmo se ficarmos nos eventos recentes e deixarmos de lado o fato de que estamos falando de um dos países mais explorados dos últimos 150 anos. Aprovar uma missão de um ano de “Apoio à Segurança Multinacional” para reforçar a polícia haitiana, restaurar a segurança e proteger infraestruturas críticas dificilmente será suficiente.

Deve-se pensar, no máximo, que é um “vislumbre de esperança” para “pessoas em sofrimento”. Essas foram as exatas palavras do ministro das Relações Exteriores do Haiti, Jean Victor Généus. Tal “vislumbre” sequer é compartilhado por todos os haitianos. O citado “Barbecue” já afirmou que, caso as forças estrangeiras cometam abusos de autoridade, ele e seus homens não ficarão assistindo, prometendo ainda mais violência para o já atribulado país caribenho.

Ele provavelmente se refere ao fato de que parte do legado da MINUSTAH é bastante criticável, com episódios de violência e de tortura envolvendo militares nepaleses, surtos de cólera com milhares de mortos, violência e exploração sexual, dentre outros. Ou seja, além de a nova missão provavelmente ser insuficiente, existe também um trauma local em relação à presença militar estrangeira no país. Os problemas não param por aí, entretanto. Por exemplo, a MINUSTAH não era apenas uma missão militar.

Ela compreendia pessoal civil e voluntários de diversas áreas, como saúde, direito e política. Enquanto o componente militar era liderado pelo Brasil, a missão como um todo era chefiada em rodízio por diversos países. Mesmo a área militar fez diversas contribuições na área de saúde. Reduzir uma missão da ONU apenas ao seu componente militar em um país como o Haiti é como querer apagar um incêndio de grandes proporções apenas com um extintor portátil.

Quênia

Um dos motivos da missão ter demorado tanto a ser aprovada é que poucos países estavam dispostos a liderá-la enquanto eram aceitos pelas principais potências. Alguns meses atrás que começou a se falar do Quênia, que de fato será o país líder da missão, com um contingente de mil policiais e militares. O país africano desempenha um importante papel regional na ordem internacional e em segurança, apoiando a luta contra o terrorismo na vizinha Somália e hospedando uma sede da ONU em Nairóbi.

Na semana passada, o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, esteve em Nairóbi e assinou um acordo de cooperação de defesa válido por cinco anos com o Quênia. Ou seja, o Quênia não é nenhum país que possa ser ignorado, como alguns podem, infelizmente, pensar. Por outro lado, o que credencia o Quênia a liderar a missão de policiamento no Haiti? Trata-se de um país francófono, como o Haiti? Não. Trata-se de um país americano ou caribenho? Também não.

Principalmente, o Quênia é uma referência internacional em policiamento ou Direitos Humanos? Não. As forças de segurança locais possuem grave histórico de abusos de Direitos Humanos, corrupção, uso excessivo de força e execuções extrajudiciais. Mesmo o último ano queniano foi bastante complicado, após uma eleição cuja legitimidade foi contestada, motivando muitos protestos e repressão violenta. E isso não é apenas uma posição moralista, como se o Brasil, por exemplo, também não sofresse desses problemas.

O ponto é que, de diversos possíveis critérios, o Quênia não cumpre nenhum. Sequer se trata de uma questão financeira, já que, ao menos nesse primeiro ano, o governo dos EUA já anunciou que vai pagar a conta de dezenas de milhões de dólares da missão. Faria muito mais sentido uma missão regional caribenha, mesmo que anglófona, com Jamaica e Bahamas à frente. Agora, entretanto, “Inês é morta”, resta apenas torcer para que essa coluna envelheça muito mal em seu alerta.

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