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LATINOS TRUMP
Apoiadoras latinas de Donald Trump em comício em Dallas, Texas, em novembro de 2019| Foto: AFP

Semana de eleições nos EUA, um dos períodos do ano mais movimentados quando se trata de política internacional. Cresce o interesse popular, cresce a audiência e crescem também os clichês e chavões. Um desses é o “voto latino”. Trump conseguiu isso com o “voto latino”, Biden conseguiu aquilo com o “voto latino”. Parece ser uma coisa só, monolítica, que alcança objetivos contraditórios, apoiando Trump na Flórida e Biden no Arizona, tudo ao mesmo tempo. A questão é que não existe esse tal “voto latino”.

Primeiro, infelizmente, deve-se constatar que se concretizaram os alertas dos cenários mais arriscados do texto mais recente aqui desse espaço. Judicialização das eleições nos EUA, questionamentos sobre os votos por correio, confusão causada pelos diferentes parâmetros adotados por cada estado, demora na contagem, declarações de vitória. Segundo, dos comentários sobre seis swing states feitos aqui ao final de setembro, quatro se concretizaram, restando confirmações sobre a Pensilvânia e a Geórgia. A espera pelas confirmações é justo o que faz com que esta coluna não seja, ainda, sobre o eventual vencedor das eleições. Coisa que pode não ser estabelecida tão cedo, talvez.

Dentre os comentários concretizados, um foi o da vitória de Trump na Flórida, muito colocada na conta do “voto latino”. Segundo pesquisas de boca de urna, Trump teve 45% do voto de eleitores latinos, mais de dez pontos acima de seu desempenho em 2016. No país como um todo, teria tido algo como um terço do voto de eleitores latinos, crescimento de cerca de 5% comparado com o pleito anterior. Ele também cresceu dentre eleitores negros e eleitores de origem asiática. Lembrando que, nos EUA, muito das campanhas eleitorais possuem focos dirigidos para questões culturais e étnicas.

Cinquenta milhões em ação

O que explica, então, Trump ter quase metade dos leitores latinos da Flórida, enquanto teve um terço dessa mesma demografia nacionalmente? O que o chavão “voto latino” nubla é que se tratam de mais de cinquenta milhões de pessoas, de mais de uma dezena de culturas e locais de origem diferentes. Sete dessas são estimadas superando a casa do milhão: guatemaltecos, colombianos, dominicanos, salvadorenhos, cubanos, porto-riquenhos e mexicanos.

E isso não quer dizer que sejam necessariamente cidadãos estrangeiros ou em situação irregular. Os cubanos, por exemplo, possuem permanência garantida por lei no país. As dezenas de milhões de pessoas de origem mexicana são um fenômeno por si só. Segundo o Pew Research Center, são 37 milhões de pessoas com essa origem vivendo nos EUA, mais de 10% de toda a população. Desses 37 milhões, cerca de quatro milhões são descendentes de famílias residentes no atual EUA em 1848, quando da guerra com o México.

Ou seja, pessoas que estavam ali antes mesmo da terra ser EUA, e tornaram-se cidadãos como um dos termos do acordo de paz. De acordo com a mesma fonte, um terço dos 37 milhões de origem mexicana são nascidos fora do país e, desses, metade reside nos EUA por mais de duas décadas. O ponto não é ficar jogando números aleatórios para assustar o leitor, mas mostrar que, apenas dentre os eleitores de origem mexicana, estamos falando de uma comunidade enorme, logo, plural. E, principalmente, é uma comunidade com profundas raízes nos EUA, tão parte da trajetória do país quanto os irlandeses de Boston ou os italianos de Nova Iorque.

Isso é visto nos estados onde são mais presentes. Califórnia, Arizona, Texas, Novo México, todos esses territórios que, 180 anos atrás, eram parte do México. Sendo uma comunidade com raízes, perene, estão interessados em pautas como sistema público de saúde, questões raciais e outros tópicos sociais, temas muito mais ligados, atualmente, ao Partido Democrata. Daí a expressiva votação para Biden dentre os eleitores de origem mexicana nos estados já citados aqui.

Uma demografia similar é a dos porto-riquenhos, quase seis milhões de pessoas. Eles possuem cidadania dos EUA ao nascer, já que Porto Rico é um território do país desde 1898. Território, não um estado da federação. Por serem cidadãos e formarem comunidades mais enraizadas, também estão interessados nas mesmas pautas, logo, são similarmente de maioria democrata. Note-se que o escrito é maioria. Dentre seis milhões de pessoas teremos indivíduos de todas as matizes ideológicas, desde os pequenos partidos até as pessoas que não votam.

Colombianos e cubanos

Do outro lado estão os eleitores de origem cubana e colombiana, totalizando cerca de cinco milhões de pessoas. À esses se juntam ondas migratórias mais recentes, como de venezuelanos e brasileiros, e a maioria dessas pessoas se concentra na Flórida. Boa parte dos colombianos está ali por terem fugido, ou seus antepassados, do conflito interno colombiano que dominou o país vizinho ao Brasil na segunda metade do século XX, entre Estado, guerrilhas de esquerda, paramilitares de direita e narcotraficantes. A maioria dos colombianos pobres fugiu para os países vizinhos, e os com maior poder econômico fugiram para os EUA, tendo um perfil socioeconômico já distinto.

É o mesmo período da chegada da maioria dos cubanos. Embora exista uma comunidade cubana mais antiga no sul dos EUA, que remonta ao período do protetorado na ilha, no início do século XX, o grosso dos cubano-americanos chegaram após 1959. Primeiro, os que foram expulsos ou fugiram com a revolução daquele ano, normalmente ou proprietários de terras ou pessoas ligadas às atividades econômicas de empresas dos EUA na ilha. Depois, os ligados à operação da Baía dos Porcos, organizada no governo JFK, em 1961, que pretendia derrubar Fidel Castro e fracassou.

Finalmente, os cubanos que migraram a partir da década de 1980, período em que começa intensa crise econômica na ilha. Esse fluxo atinge seu pico na década de 1990 e é marcado pelas imagens impactantes de pessoas cruzando as águas entre Cuba e a Flórida em barcos improvisados. Sendo comunidades mais recentes, colombianos, cubanos e venezuelanos estão mais interessados em oportunidades econômicas que propiciem ganhos imediatos, seja para se recuperarem economicamente da imigração ou para enviar dinheiro para familiares nos países de origem.

Essas pessoas, então, priorizam pautas econômicas mais liberais, algo que os aproxima dos republicanos. Além disso, se preocupam mais do que a média do eleitorado com pautas de política externa, habitualmente priorizando vieses conservadores, com a maioria dos cubanos sendo anti-Castro ou colombianos contra aproximações e negociações com grupos armados de seu país de origem. Mais um motivo para os cubanos da Flórida serem um importante bastião do Partido Republicano. E o mesmo alerta de antes deve ser feito agora: dentre um universo tão grande de pessoas, teremos grupos plurais.

“Voto latino” é caricatura

Finalmente, no “meio do caminho”, temos os cerca de cinco milhões de pessoas de origem centro-americana, como salvadorenhos, guatemaltecos e nicaraguenses. Esses grupos não possuem um impacto eleitoral tão grande como os outros citados, já que muitos deles estão em situação irregular, ou com familiares em situação irregular, o que inibe maior participação política, por temerem represálias, por exemplo. Ainda assim, são uma parte razoável da população e muitos deles votam. Simpatizantes de qual partido, pode-se perguntar.

Bem, por isso estão no “meio do caminho”, já que eles se dividem. Dentre as pessoas de origem nicaraguense, por exemplo, teremos tanto os pró-republicanos, pois chegaram no país fugindo da revolução sandinista, quanto os pró-democratas, que culpam as intervenções de governos republicanos dos EUA no seu país pela própria guerra civil, como no episódio Irã-Contras. Normalmente a clivagem dessa demografia é socioeconômica, e fenômenos similares se repetem nas outras comunidades.

É possível que os democratas possuam leve vantagem sobre os republicanos dentre os centro-americanos, por serem, supostamente, mais brandos nas suas políticas migratórias, o que não é totalmente verdade, para começo de conversa, mas isso é tema para outra coluna. O fato é que não existe “voto latino”, como uma caricatura étnico-racial de um voto homogêneo de dezenas de milhões de pessoas baseado apenas no fato de sua língua natal, ou de seus ancestrais, ser o castelhano. São grupos diferentes, com interesses próprios e voz política. Já deu de ficar repetindo esse clichê a cada quatro anos.

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