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Não, Bashar al-Assad não “está de volta”, ele nunca foi embora. O ditador da Síria participou da 32ª Cúpula da Liga Árabe, realizada no último dia 19, em Jedá, na Arábia Saudita. Seu governo estava suspenso da organização desde o início da guerra civil, em 2011, incluindo um período de representação síria pela Coalizão Nacional Síria, um guarda-chuva de oposição. A presença de Assad na Liga Árabe é um passo importante para o fim completo da guerra na Síria e a reconstrução do país. Principalmente, marca uma realidade que muitos não querem ver: Assad venceu a guerra.
A normalização das relações entre o governo Assad e a maioria dos governos árabes ganhou força especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Assad, entretanto, na prática, era o vencedor da guerra desde 2016, ao menos, quando a intervenção russa em nome de seu aliado aniquilou as principais forças de oposição. Junto com os curdos, que contam com apoio dos EUA, foram retomadas também as principais localidades nas mãos do autointitulado Estado Islâmico, o Daesh. Além da Rússia, a sobrevivência de Assad também contou com o Hezbollah e o Irã.
Falamos bastante da guerra na Síria aqui em nosso espaço de política internacional e, em março de 2020, escrevemos aqui que “Assad venceu a guerra. Goste-se ou não dessa conclusão, não deixa de ser a realidade”. Passaram-se três anos e alguns atores políticos continuam negando essa realidade, como os EUA e o Catar. Pode-se falar que o governo Assad é um governo responsável por uma sistemática violação dos direitos humanos de sua população e possivelmente responsável por crimes contra a humanidade durante a guerra. Ambas afirmações pertinentes e justas.
China e interesses
Considerando outros atores envolvidos no conflito e na cúpula da Liga Árabe, entretanto, seria impossível não apontar que essa acusação teria tons de hipocrisia. A reabilitação do governo Assad pela maioria de seus vizinhos árabes é um fato consumado. Nos bastidores, provavelmente a China teve papel nessa reabilitação. No último mês de março, no contexto do acordo entre Irã e sauditas, mediado pela China, escrevemos aqui que “as delegações árabes que visitaram a Síria após o recente terremoto, mais o novo acordo, devem abrir caminho para a normalização das relações entre a Síria e a Liga Árabe”.
Quais os interesses nessa normalização, então? Assad precisa de mais aliados e o máximo reconhecimento internacional possível, para fazer frente tanto ao chamado Ocidente e também em relação aos outros atores presentes em território sírio. Especialmente, as áreas ocupadas pela Turquia e por seus aliados. Esse é o elo mais estremecido para o governo Assad. No último dia 10, inclusive, os ministros das Relações Exteriores da Rússia, Síria, Turquia e Irã se reuniram em Moscou. Na pauta, a retomada das relações entre sírios e turcos e a negociação da eventual retirada turca.
Assad, inclusive, ao discursar na Liga Árabe, alertou contra o “pensamento otomano expansionista”, referência ao governo Erdogan, e que muitos problemas da região teriam sido causados pela Irmandade Muçulmana, grupo que tem apoio da Turquia, mas é visto como inimigo pela maioria dos Estados árabes. Além de aliados políticos, Assad vai precisar de cada vez mais dinheiro para a reconstrução de seu país e de seu regime político. Essa eventual cooperação de reconstrução, uma espécie de “Plano Marshall regional”, só é possível com a reconciliação entre sauditas e iranianos.
Também deve incluir capital chinês, já que, além do cenário mundial de início de “desacoplamento” entre as economias de China e EUA, a amplitude e o nível das sanções ocidentais proíbem qualquer cooperação econômica com a Síria para empresas e companhias que façam negócios com o Ocidente. No lugar da gigantesca saudita Aramco investindo na estrutura de petróleo síria, provavelmente teremos uma empresa “paralela”, que possa fazer esse investimento sem medo de sanções, em um exemplo hipotético.
Economia e realidade
A reconstrução da Síria é uma pauta econômica de grande importância para o Irã, que vê nisso a oportunidade de “fazer valer” seu apoio militar e político a Assad. O exemplo do petróleo é hipotético, mas não é totalmente descabido, por dois motivos. Primeiro, o antigo projeto de oleoduto pelo território sírio, ligando o golfo Pérsico ao Mediterrâneo, pode ser reavivado. Esse projeto, inclusive, está na gênese da intervenção árabe na guerra civil da Síria. Uma intervenção que produziu, mesmo que de maneira indireta, o Daesh. Tal oleoduto poderia aumentar o fluxo de petróleo árabe diretamente para a Europa.
Segundo, com as crescentes descobertas de reservas de hidrocarbonetos no Mediterrâneo oriental, a costa da Síria torna-se potencialmente rica. Finalmente, além dos laços políticos e da reconstrução econômica, já comentados, existe o fato de existirem milhões de refugiados sírios, muitos deles na Turquia, na Jordânia e em outros países árabes. Essas pessoas poderão voltar para suas casas? Se sim, como e quando? O “retorno” de Assad já ganhou outro capítulo, já que o governo dos Emirados Árabes Unidos confirmou que pretende convidá-lo para a próxima Conferência do Clima, que será realizada em Dubai.
Cabe agora aos EUA e aos europeus aceitarem a realidade. Não é a melhor realidade do mundo, longe disso, não se trata de uma boa notícia que Assad é o vencedor, mas o que mais farão? Insistir na política de sanções e sufocamento econômico, que só trouxe problemas aos habitantes comuns do país? Expandir a lógica militar? Meio milhão de mortos e mais de 10 milhões de deslocados, depois de 12 anos de guerra, falam mais alto. Principalmente, os vizinhos árabes da Síria e os pares de Assad estão prontos para aceitar o ditador como o vencedor desse capítulo.