Uma das mais conhecidas forças policiais do mundo colaborou para colocar uma das mais nefastas e bizarras teorias da conspiração em evidência novamente. O perfil em uma rede social dos arquivos do FBI, a polícia federal dos EUA, postou apenas, em inglês, “Protocolo dos Sábios de Sião” e um link para um post nos arquivos. Imediatamente o post alcançou as dezenas de milhares de compartilhamento, saiu em diversos jornais e despertou diversas reações. Uma delas a de espanto. Afinal, o que estava acontecendo?
Primeiro, um pouco de contexto. Os Protocolos dos Sábios de Sião foram publicados originalmente em 1903, mais de um século atrás, na Rússia, e contém supostas minutas e atas de congressos de líderes judeus sionistas, que teriam ocorrido no final do século XIX. A finalidade seria a da “dominação globalista” judaica, controlando as principais economias mundiais e a imprensa. Tais minutas e atas teriam sido obtidas pela Okhrana, a polícia secreta czarista.
Na verdade, todo o documento é falso, com textos forjados pela polícia czarista, por ativistas antissemitas ou até mesmo como sátira dos congressos sionistas que estavam realmente acontecendo no período. A obra que funda o nacionalismo judaico contemporâneo é Der Judenstaat, de Theodor Herzl, publicada em 1896, poucos anos antes da forja dos Protocolos. Qual a finalidade, então, de criar os tais Protocolos dos Sábios de Sião e expor a tal conspiração?
Basicamente, legitimar a perseguição antissemita na Rússia czarista, governo historicamente agressivo com os judeus e marcado pelos pogroms. De quebra, o governo czarista também conseguia justificar a repressão aos movimentos socialistas que cresciam na época. Os anarquistas da Narodnaya Volya assassinaram o czar Alexandre II em 1881 e o futuro partido bolchevique foi fundado clandestinamente em 1898. Uma das principais alas do partido era a Liga Trabalhista Judaica, um dos maiores grupos políticos da Rússia.
A ligação entre socialismo e os judeus não era nova e nem dependia da Bund, como a liga era conhecida. Karl Marx era etnicamente judeu, embora não fosse religioso, neto de rabinos. E conspirações com judeus como alvo também não eram novas, com farto material registrado desde Roma e muito conhecidas por toda a Europa nos dois mil anos que antecedem os Protocolos. Um caso muito estudado é o de Martinho Lutero, cujo antissemitismo foi assimilado na ideologia nazista 400 anos depois de sua morte.
Teorias da conspiração
A obra possui, então, um propósito claro e um farto material de origem. O que torna os Protocolos tão sedutores é, curiosamente, serem muito vagos. É assim que teorias da conspiração funcionam. A falta de evidências é usada como se fosse uma evidência em si. “Oras, é claro que não existem documentos provando, eles não iam deixar!”. Quem são “eles”? Tanto faz, as lacunas são preenchidas pelos vieses de confirmação de quem as lê, em qualquer época ou lugar.
O texto é generalista, cheio de truísmos sobre “como dominar o mundo”. Coisas como “assumir o controle da mídia”, controle das instituições financeiras, mudar ou destruir a ordem social tradicional, criar uma ordem “globalista”. Nada sustentado com documentos, datas, métodos específicos, apenas esses truísmos que compõe toda e qualquer teoria da conspiração. E, claro, esse seria o objetivo dos judeus, ou dos socialistas, ou eles são a mesma coisa, ou seus aliados. Tanto faz.
A finalidade original da polícia czarista pode ser ajustada ao gosto de quem lê e de quem acredita. Em 1919 os Protocolos tiveram sua primeira edição em inglês. O empreendedor Henry Ford, conhecido pelos automóveis e pela revolução de produção, e também por ser simpatizante do nazismo, patrocinou a publicação de mais de meio milhão de cópias do livro, nos EUA. Um número bastante razoável de exemplares, considerando a época. Na Alemanha nazista, da década de 1930, os protocolos tornaram-se matéria escolar.
Foram publicados em diversos idiomas desde então. No Brasil, foi editado na década de 1930. Já na segunda metade do século, o Presidente Nasser, do Egito, e o ditador Khadaffi, da Líbia, dentre outros, afirmavam que os Protocolos eram legítimos. Alguns anos atrás, o ativista criacionista Kent Hovind, dos EUA, pregava pela validade das conspirações do suposto documento. A questão é que já tem um século que é sabido e comprovado que o tal plano de dominação judaica é forjado.
Investigação do FBI
Do que se tratava o post, então? Não era necessário ser um gênio para compreender, apenas alguém com um mouse funcionando e um conhecimento básico do idioma inglês. Ao clicar no link, a pessoa se depararia com um arquivo baixável, composto de 139 páginas, todas elas originalmente em papel que foram escaneadas. Nelas estão os tais Protocolos, panfletos sobre uma conspiração “judaica marxista do governo invisível” nos EUA na década de 1960 e documentos oficiais do governo dos EUA.
Ao checar os tais documentos, nota-se o motivo da publicação. São relatórios do comitê de justiça do Senado dos EUA e correspondência do FBI. A mais recente delas, assinada por Edgar Hoover, um dos mais conhecidos diretores do FBI. Datada de agosto de 1970, cinquenta anos atrás. Pessoas enviaram os Protocolos como denúncia de conspirações contra os EUA e seu governo, as autoridades receberam a denúncia, averiguaram, produziram um relatório e pronto, assunto encerrado.
Depois do prazo de cinquenta anos e provavelmente sem interesse público em estender o sigilo de tais documentos, eles deixaram de ser confidenciais, foram colocados nos arquivos públicos e, ao criar-se o post no site dos arquivos da instituição, ele foi automaticamente replicado nas redes sociais. Foi exatamente isso que o FBI declarou no dia seguinte da publicação, pedindo desculpas pelos “aborrecimentos”. O grande problema foi que o post automático não continha contexto algum.
Em uma época em que a maioria das pessoas lê apenas uma manchete e é guiada não pelo desejo de informação, mas pelos seus vieses de confirmação, a falta de contextualização abre margem para o que aconteceu. Imediatamente, milhares de pessoas interpretaram o arquivo pelo FBI como um carimbo de autoridade que garantiria os Protocolos como legítimos. Chamar neonazistas ou simpatizantes do nazismo de idiotas deve ser redundância, mas é a única coisa que explica.
A falta de contexto foi apontada por diversas organizações judaicas nos EUA, que constatam um aumento nos episódios de violência antissemita no país. Em outubro de 2018, por exemplo, ocorreu o ataque à sinagoga de Pittsburgh, que deixou onze mortos. Os motivos do terrorista eram denunciar o “genocídio contra brancos”, que era viabilizado também pelos judeus, que financiavam os imigrantes centro-americanos para irem aos EUA matarem os brancos. Claro, tudo teoria da conspiração.
Contexto e violência
Onze pessoas morreram por causa de panfletos e teorias conspiratórias como a dos Protocolos, cujas “ideias” influenciaram diversos atos de violência, radicalismo e intolerância por mais de um século. Se a falta de contexto certamente prejudicou a situação, novamente, não era necessário ser um gênio para notar a realidade. Ao abrir o arquivo, repete-se, estavam os relatórios elaborados no período. Todos os documentos afirmam veementemente que se trata de uma fabricação antiga.
Os relatórios vão além e explicitam que os Protocolos não possuem nenhuma legitimidade, são fruto de antissemitismo e de um governo totalitário que tinha um de seus pilares na repressão de grupos que via como inimigos, como os judeus, tidos como sinônimo de socialismo. Interessante lembrar que esse “sinônimo” também era evocado pelos nazistas e simpatizantes do fascismo. Um dos melhores exemplos de viés de confirmação está em um dos editores posteriores do livro, o fascista italiano Julius Evola.
Simpatizante do nazismo e adepto de ideias eugenistas, Evola escreveu que não importava a autenticidade dos Protocolos, o que importava era que eles “representavam a realidade”. Ou seja, é falso, mas é verdade, pois eu desejo que seja. Novamente, um comportamento idiota. Muitos apontaram para o post dos arquivos do FBI e bradaram “Viu como é verdade, o FBI postou, é verdade”, sendo que sequer tiveram a honestidade intelectual de ver do que se tratava.
Em tempos de discussão de “fake news”, é um exemplo interessantíssimo de como a internet é uma ferramenta, não a culpada por informações falsas ou por teorias da conspiração. Elas apenas circulam mais rápido hoje em dia, seja nas redes sociais ou nos grupos de aplicativos de mensagens. Um texto falso publicado mais de cem anos atrás, cuja fraude foi comprovada menos de duas décadas depois da sua publicação, não precisou da internet para ser disseminado, para influenciar gerações ao ódio irracional.
A palavra escrita tem essa força, mesmo que seu veículo seja apenas o papel. A culpa das tais “fake news” não é da inclusão digital, mas da falta de prática e de difusão de leitura, da vontade de enxergar “verdades ocultas”, que só aquele indivíduo enxerga. Infelizmente, muitas pessoas ainda acreditam nos Protocolos, mesmo que não admitam, ou então em ideias similares, sempre sem evidências. Caso não tenha ficado claro ainda, entretanto, os Protocolos dos Sábios de Sião foram feitos pra te fazer de idiota.
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