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Militantes houthis em 2015, protestando contra ataques aéreos sauditas.
Militantes houthis em 2015, protestando contra ataques aéreos sauditas.| Foto: Henry Ridgwell/Voice of America/Domínio público

Com as tensões na região do golfo de Aden, o Iêmen e os houthis voltaram à proeminência no noticiário, mas nem sempre com precisão. Desde o dia oito de outubro de 2023, após os ataques terroristas do Hamas, os houthis são atores diretamente envolvidos no conflito regional. Essa situação se agravou no último mês de dezembro, quando os EUA iniciaram a Operação Guardião da Prosperidade, realizando ataques contra os houthis. A questão é: quem são esses houthis?

Durante a Guerra Fria, entre 1962 e 1990, o atual Iêmen era dividido em duas repúblicas. O Iêmen do Sul, socialista marxista, sucessor do protetorado britânico de Aden, e o Iêmen do Norte, um regime nacionalista árabe sucessor do antigo Reino do Iêmen, criado no vácuo da derrota do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial. O interesse britânico na região sul era o controle da navegação pelo golfo de Aden, que liga o mar da Arábia e o Oceano Índico ao mar Vermelho e, consequentemente, ao canal de Suez.

Essa rota de navegação era vital na conexão entre a metrópole europeia britânica e suas mais importantes posses imperiais, a Índia, a Malásia e Hong Kong. Existe um verdadeiro gargalo ali, o estreito de Bab-el-Mandeb, “Portal das lágrimas” em árabe, devido aos riscos de ser contornado, de apenas vinte e seis quilômetros de largura. Caso o estreito fosse controlado por uma força hostil aos britânicos, o antigo império podia ser cortado ao meio. Por isso era necessária a sua presença constante, por meio do protetorado.

Se a presença no sul e no controle do canal era justificada, o norte não era tão interessante para as potências imperiais europeias. Habitado por tribos árabes xiitas, da vertente zaidita, o território também não tinha ligações com as monarquias sunitas mais ao norte, como a casa de Saud. Com a retirada otomana, desenvolveu-se o reino Mutavaquilita do Iêmen. Essa breve recapitulação histórica não é afetação ou vício do colunista; é necessária para ajudar no entendimento do que ocorre hoje.

Unificação

O Iêmen foi unificado em 1990, com a euforia do período final da Guerra Fria, o enfraquecimento do apoio soviético ao Iêmen do Sul e o crescimento da influência saudita na região. De duas repúblicas que nunca haviam sido um Estado unificado, surgia uma nova república, dominada pela elite intelectual e comercial sunita do sul, que, financiada pelos sauditas, suplanta os marxistas no governo. Em uma tacada só, os sauditas expandem sua influência no vácuo da Guerra Fria e acabam com a república xiita.

A questão é que essa unificação nunca passou de euforia. Na prática, o país continuou dividido mais ou menos nas mesmas linhas. É basicamente essa a divisão da guerra civil iniciada em 2014, com os houthis, xiitas, controlando o território ao norte, e os sunitas controlando o território ao sul. Enquanto os sunitas mantiveram o apoio saudita, os xiitas conquistaram um importante aliado nas últimas décadas, o Irã. Ao mesmo tempo, os sunitas já não são monolíticos no país.

Hoje, existem duas facções no sul, uma apoiada pelos sauditas, a chamada República do Iêmen Internacionalmente Reconhecida, e outra apoiada pelos Emirados Árabes Unidos, o Conselho de Transição do Sul, que já abordamos aqui em nosso espaço. O CTS, inclusive, já proclamou sua “autonomia” e pode, em algum momento futuro, querer dissolver a unificação feita em 1990 e restaurar o antigo Iêmen do Sul. E os houthis, que controlam o território ao norte, quem são?

Reação

O Movimento Houthi, xiita zaidita, surgiu na década de 1990, como reação à unificação das duas repúblicas iemenitas. Novamente, frisa-se, eram duas entidades que nunca haviam sido um Estado soberano unificado. Não é como a reunificação alemã de 1991 ou uma hipotética reunificação das duas repúblicas coreanas. Com a unificação, os maiores perdedores, por assim dizer, foram os xiitas do norte. De governar um país eles passaram a ser uma minoria religiosa vista com desconfiança pelo seu governo nacional.

“Houthi”, nesse caso, se aplica à tradicional tribo que lidera o movimento. Não é uma religião, nem uma etnia: é uma família. O líder dos houthis é Abdul-Malik al-Houthi, irmão de Hussein al-Houthi, fundador do movimento, que estudou Islã e xiismo no Irã. Hussein foi morto pelo exército iemenita em 2004, depois da prisão de dezenas de seus seguidores, durante o levante xiita contra as políticas repressivas do governo nacional. Este era orientado pelos sauditas e por clérigos wahabitas, a vertente mais extremista do sunismo.

Ambos os líderes citados são filhos de Badreddin al-Houthi, que morreu em 2010, aos 84 anos de idade e foi, por décadas, o mais importante e respeitado clérigo xiita da região, seja na monarquia, seja na república. O ponto dessa recapitulação é mostrar que os “rebeldes houthis” não são um grupo formado por maltrapilhos, uma ralé desorganizada, como parte da imprensa tenta transmitir. Eles controlam o que é, em quase todos os aspectos, um aparato de Estado, mesmo que sem reconhecimento internacional.

Trata-se da elite intelectual e política influente em seu território por décadas, que já governou esse território de forma soberana. Possuem tanto guerrilhas irregulares como forças organizadas e treinadas, recebendo muito equipamento e consultoria do Irã, uma potência regional e grande produtor bélico. Cobram impostos e, embora não controlem o golfo de Aden propriamente dito, controlam parte da margem de um gargalo estreito de onde não é possível escapar.

Ator regional

Se não se trata de um ator estatal propriamente dito, trata-se, ao menos, de um dos grupos mais organizados da região e um importante proxy do Irã, um grupo que age “por procuração”. Segundo a pesquisadora iemenita Afrah Nasser, que vive em exílio na Suécia, antes da pandemia, os houthis movimentaram cerca de dois bilhões de dólares em um ano, cobrando impostos e “taxas de navegação”, além do financiamento iraniano. Claro que, depois de uma década de guerra, a economia iemenita está em frangalhos.

Não apenas a economia, mas o país como um todo. São cerca de cinco milhões de refugiados internacionais e vinte milhões de deslocados internos, uma das maiores crises do mundo. A guerra civil incluiu diversas atrocidades e crimes contra a humanidade, cometidos não apenas pelas forças locais, mas também pelos sauditas. A falta de assistência humanitária e a destruição da infraestrutura local causou uma epidemia de cólera com mais de dois milhões de casos e milhares de mortes.

A abordagem de que os houthis seriam um grupo maltrapilho leva a conclusões errôneas. Uma delas é a de que o grupo não representa riscos para a economia mundial. Representa, sim. Diversas empresas importantes da logística e do transporte marítimo já redirecionam seus navios para longe do canal do Suez, contornando o continente africano. O impacto no comércio e na economia mundial é na casa dos bilhões de dólares. Sem mencionar o impacto na economia israelense.

São navios que rumam para Israel, ou que operam com empresas israelenses, que são os alvos principais. Inteligência essa coletada pelos iranianos. Esqueçam as bandeiras; hoje as bandeiras do grande comércio marítimo são todas de conveniência, de países como Libéria ou Ilhas Marshall, onde as taxas são mais baratas. Os verdadeiros operadores dos navios são as empresas, algo nem sempre aparente. O porto de Eilat, o principal porto israelense no mar Vermelho, perdeu 85% de seu fluxo nos últimos meses.

Outra conclusão errônea induzida pela abordagem citada é a de que alguns ataques aéreos esparsos, aqui e ali, resolvem a situação. Podem resolver no curto prazo e garantir o trânsito de navios, talvez. No médio e longo prazo, entretanto, o Irã continuará a ter um proxy importante ali, e a única solução para a guerra civil no Iêmen é a negociação, com talvez a restauração das duas antigas repúblicas iemenitas. Hoje, os houthis não são apenas “rebeldes do Iêmen”, eles são o próprio Iêmen.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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