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Cota local de conteúdos em serviços de streaming, como a Netflix, e outros temas foram submetidos a referendo na Suíça no último domingo
Cota local de conteúdos em serviços de streaming, como a Netflix, e outros temas foram submetidos a referendo na Suíça no último domingo| Foto: EFE/Christian Monterrosa

O último dia 15 foi data de mais uma rodada de referendos populares na Suíça. Periodicamente, comentamos o assunto aqui em nosso espaço de política internacional, tanto pelo saudável costume suíço de consultar a população em diversos temas, quanto pelo fato de muitas dessas discussões serem também válidas para a sociedade brasileira, podendo servir de exemplo, tanto positivo quanto negativo.

Em outras ocasiões, comentamos as origens dos referendos na Suíça, como o fato de que, quando o parlamento aprova uma lei, uma petição popular pode ser articulada e, caso a petição consiga 50 mil assinaturas em um prazo de cem dias, a aprovação da lei é suspensa e ela é decidida em referendo de maioria simples. O mesmo processo ocorre se um terço dos cantões, os “estados” suíços, desafiarem a lei.

Também existe a participação popular ativa. Se um projeto de lei elaborado por cidadãos conseguir 100 mil assinaturas em um prazo de 18 meses, ele também será submetido ao voto popular, podendo ganhar força de lei após discussão parlamentar. Nenhum dos três votos do último dia 15 era algum desses casos, entretanto. Todos eram temas em que o referendo era uma etapa obrigatória.

Serviços de streaming e transplante de órgãos

Em dois casos, o referendo é necessário por envolver a alteração das leis federais suíças e outro por alterar a política externa nacional. O primeiro deles, Emenda da Lei Federal sobre Produção e Cultura Cinematográfica, foi apelidado como “Lei Netflix”. Atualmente, pela constituição, as emissoras de televisão são obrigadas a investir pelo menos 4% de sua renda em produções locais.

Com as mudanças dos tempos, entretanto, muitas pessoas migraram para serviços de streaming. A consulta propunha enquadrar os serviços de streaming na mesma categoria que as emissoras de televisão. Ou seja, serviços de streaming teriam que direcionar ao menos 4% de sua renda local para produções suíças. A proposta também exige que ao menos 30% do conteúdo de streaming disponível no país seja de produções europeias.

A proposta era apoiada pelo parlamento e pela maioria dos partidos, alegando que existiria um tratamento desigual entre emissoras de televisão e plataformas de streaming, que deveriam, segundo eles, em essência, ser tratados como a mesma coisa. Os críticos da proposta alegavam que o custo dos serviços aumentaria, com a eventual fatia de 4% sendo repassada aos consumidores no preço dos pacotes de assinaturas dos serviços.

A segunda proposta de alteração votada, a Emenda da Lei Federal sobre Transplantes de Órgãos, Tecidos e Células, trata de um tema importantíssimo para qualquer sociedade. Pela lei suíça, uma pessoa somente seria enquadrada como doadora de órgãos caso tivesse explicitamente consentido com o procedimento em algum momento da vida. A presunção era de objeção e, na dúvida, a decisão era repassada aos familiares, com muitas recusas.

Como consequência, a fila para algumas doações de órgãos aumentou bastante nos últimos anos. A proposta no referendo invertia o raciocínio. Agora, o consentimento seria presumido, precisando de uma declaração explícita em vida de objeção ao procedimento. O papel da família, entretanto, continuaria, o que gerou cerca discussão, já que alguns acusaram a lei de não ser clara sobre possível objeção de familiares.

Novamente, a proposta era apoiada pelo parlamento e pela maioria dos partidos, afirmando que a alteração legislativa ainda manteria o papel da família e aumentaria as possibilidades de transplantes de órgãos que podem salvar vidas. Já os críticos da proposta afirmavam que ela violaria os direitos individuais e que, com a presunção de consentimento, muitas pessoas seriam doadoras de órgãos contra suas crenças particulares.

Fronteiras da União Europeia

Finalmente, a terceira proposta influencia a política externa do país, a adoção do regulamento da União Europeia sobre a Guarda Europeia de Fronteiras e Costas. Isso pode gerar estranhamento, já que a Suíça não é parte da UE, mas é parte do espaço Schengen, a área comum europeia, desde 2005. Como tal, ela é parte da Frontex, responsável pela fiscalização das fronteiras externas do espaço Schengen.

Em 2019, antes da pandemia, por conta da crise migratória decorrente da guerra na Síria, a UE votou pela expansão da Frontex, com aumento de pessoal e de recursos. Em 2015, o orçamento da agência era de 143 milhões de euros. No ano passado, seu orçamento foi de 543 milhões, quase quatro vezes mais. O governo federal suíço concordou com a expansão, mas isso requer o consentimento do eleitorado para ter efeito.

Esse voto era o menos polarizado no debate público suíço, com apenas parte da esquerda radical contra a participação na Frontex, por supostamente ferir direitos de pessoas que buscam refúgio. Pesava a favor o fato de que colocar a participação suíça na Frontex em xeque poderia implicar no questionamento, e até remoção, da presença do país no espaço Schengen como um todo.

O referendo contou, infelizmente, com a presença de apenas 40% do eleitorado. Em contraste, o referendo de novembro de 2021 teve comparecimento de 65% dos eleitores. Dessa vez, todas as três propostas foram aprovadas. A “Lei Netflix” com 58,4% dos votos, a emenda sobre doação de órgãos com 60,2% dos votos e, finalmente, a participação na Frontex foi aprovada com 71,4% dos votos.

Os suíços ainda votarão em mais duas rodadas de referendos em 2022, em setembro e em novembro. Claro que a realidade suíça, por suas dimensões e população, favorece essa profusão de consultas populares, sendo difícil fazer a mesma coisa em um país com as dimensões do Brasil, mas não custa admirar e compreender o funcionamento de uma sociedade democrática que pode servir de exemplo.

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