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Sob a aparência inofensiva de um programa de cooperação médica, o Mais Médicos foi, na prática, uma das mais engenhosas operações de financiamento externo já executadas por um governo brasileiro. Apresentado como solução emergencial para a carência de profissionais em regiões remotas, o programa converteu-se em um fluxo regular de recursos públicos brasileiros para os cofres de uma ditadura estrangeira. Por meio da intermediação da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Brasília repassava valores integrais relativos a cada médico cubano, dos quais a maior parte era retida pelo regime de Havana. Aos profissionais, restava apenas uma fração – e a condição tácita de permanecer sob vigilância e controle do Estado que os tratava como patrimônio humano exportável.
Qualquer brasileiro minimamente honesto já sabia de tudo isso em 2013. Mas agora, que o governo americano começa a sancionar os responsáveis brasileiros por essa trama sórdida, o programa Mais Médicos – que eu sempre apelidei de “Mais Cuba” – deverá passar por uma verdadeira autópsia.
A engenharia, travestida de humanitarismo, obedecia a uma lógica prévia e de longo alcance: a que orienta, desde o início dos anos 1990, o consórcio político-criminal conhecido como Foro de São Paulo (sobre o qual já discorri amplamente aqui na coluna). Concebido por Lula e Fidel Castro à sombra do colapso soviético, o Foro nasceu para preservar e expandir o projeto comunista na América Latina. Seu método não consistia em retomar a velha estratégia insurrecional, mas em construir, dentro do Estado e à margem dele, redes permanentes de poder e financiamento.
Apresentado como solução emergencial para a carência de profissionais em regiões remotas, o Mais Médicos converteu-se em um fluxo regular de recursos públicos brasileiros para os cofres de uma ditadura estrangeira
Nessa arquitetura, programas sociais e grandes obras de infraestrutura assumiram papel central. O Porto de Mariel, em Cuba, financiado pelo BNDES; a refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, em parceria com a estatal venezuelana PDVSA; e o próprio Mais Médicos obedecem a uma matriz comum: o uso de contratos e convênios oficiais como canais de transferência de recursos para regimes aliados. O expediente é eficiente porque se apresenta como política pública legítima, blindada contra críticas por seu verniz técnico e pelo apoio de organismos multilaterais. Assim, a ideologia avança protegida pelo escudo da burocracia.
O exemplo venezuelano é instrutivo. Sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro, a PDVSA foi transformada em caixa financeiro para sustentar aliados do Foro, dentro e fora da Venezuela. No Brasil, contratos superfaturados e investimentos bilaterais funcionaram como via de mão dupla: garantiam capital e apoio diplomático a Caracas, enquanto alimentavam a rede empresarial e partidária ligada ao PT e seus satélites. A parceria com a Odebrecht foi decisiva nesse arranjo. Em troca de obras no exterior, a empreiteira irrigava campanhas eleitorais, mantendo no poder o grupo político comprometido com a estratégia continental.
O caso do Porto de Mariel repete o padrão. Sob a justificativa de fomentar o comércio exterior, o BNDES financiou, com bilhões do contribuinte brasileiro, a ampliação de um terminal cubano que serve como ponto estratégico para a ilha. A obra, executada pela Odebrecht, não apenas garantiu recursos a Havana, mas também serviu para consolidar laços políticos e reforçar a dependência mútua entre as duas ditaduras: a cubana, formal; e a brasileira, de tipo progressivamente judicial-partidário.
No campo interno, o Mais Médicos foi ainda mais audacioso. Médicos cubanos, disciplinados e politicamente confiáveis, eram deslocados para áreas de difícil acesso no Brasil, reforçando a imagem de um governo que cuidava dos pobres. Ao mesmo tempo, o dinheiro pago pelo Brasil sustentava o regime que os enviara, alimentando uma máquina partidária transnacional. Não havia desperdício ideológico: cada profissional servia como trabalhador, propagandista e ativo político. Quiçá espião.
Quando, em 2018, o governo brasileiro propôs pagar diretamente aos médicos e exigir a revalidação de seus diplomas, o contrato desmoronou. Havana retirou seus profissionais, deixando claro que a prioridade nunca foi a assistência médica, mas o controle político e o ganho econômico. Sem a intermediação da Opas e sem a retenção dos salários, o programa perdia sentido para a ditadura cubana. Foi o momento em que o véu humanitário se rompeu, revelando o arranjo como o que realmente era: uma transação de poder entre Estados ideologicamente alinhados.
O caso expõe, de forma cristalina, a tese central sobre o Foro de São Paulo: longe de ser uma simples articulação partidária, ele funciona como uma holding revolucionária, onde cada filial nacional atua de modo a fortalecer o conjunto. A política externa dos governos petistas – com seus financiamentos seletivos, convênios assimétricos e blindagens diplomáticas – foi o braço internacional desse empreendimento. O Mais Médicos apenas levou essa lógica à escala de política doméstica, usando a saúde pública como vetor de um projeto geopolítico.
Os beneficiários do arranjo são previsíveis: regimes falidos que recebem injeções financeiras; partidos que ganham propaganda gratuita e dividendos eleitorais; burocratas internacionais que reforçam sua relevância como mediadores. Os perdedores também: o contribuinte, que financia a engrenagem; o paciente, reduzido a figurante na encenação política; e o próprio médico cubano, usado como peão na engrenagem do narcossocialismo latino-americano.
A verdadeira astúcia desse modelo está na sua capacidade de operar simultaneamente em duas esferas: a da política formal – onde se apresenta como iniciativa legítima, contra a qual só críticos cruéis se levantariam – e a da política subterrânea, onde cumpre sua função estratégica de sustentação recíproca entre regimes. O Foro de São Paulo transformou a cooperação internacional em um mecanismo de lavagem ideológica, pelo qual recursos estatais são convertidos em capital político para fortalecer um bloco que se imagina historicamente predestinado.
O Mais Médicos foi menos um programa de saúde do que um estudo de caso sobre o funcionamento real da imoralidade comunista
O mecanismo também é adaptável. Na Bolívia, por exemplo, Evo Morales utilizou empresas estatais e contratos energéticos com o Brasil para garantir financiamento cruzado de projetos de poder, mantendo-se no cargo por meio de manobras constitucionais e apoio externo. No Equador, Rafael Correa recorreu a empréstimos chineses e contratos de infraestrutura como moeda de troca política, mantendo-se fiel ao bloco e recebendo, em troca, blindagem diplomática. Em todos os casos, a retórica é a mesma: integração regional, solidariedade, desenvolvimento. O resultado também: concentração de poder e enfraquecimento das instituições de controle.
O Mais Médicos – ideia que partiu de Cuba, e foi orquestrada em negociação secreta com o desgoverno da Mulher sapiens – foi, portanto, menos um programa de saúde do que um estudo de caso sobre o funcionamento real da imoralidade comunista. Com o cinismo de sempre, e por meio de uma operação abjeta de propaganda (para a qual escalou o seu enxame de imbecis coletivos), o PT não hesitou em retratar os médicos brasileiros como “frescos” e elitistas”, pretensamente avessos a atender pacientes em regiões remotas. Os médicos cubanos, ao contrário, forjados pelos ideais da revolução castrista, seriam mais generosos, conscientes e dispostos a se sacrificar pelos mais carentes.
O conluio castro-lulista sorria para a câmera, exibia jalecos brancos e falava em solidariedade. Enquanto isso, os recursos do contribuinte brasileiro eram desviados para manter de pé um regime que oprime seus cidadãos com a mesma naturalidade com que exporta sua mão de obra. Como confessou o Descondenado-em-chefe no discurso que celebrou os 15 anos da entidade, o Foro de São Paulo foi sempre “uma ação política de companheiros”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




