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Foto: Jory Krüspe/Free Images
Foto: Jory Krüspe/Free Images| Foto:

“A utopia não tem qualquer compromisso com resultados. Sua única função é a de permitir a seus adeptos condenar o que existe em nome do que não existe”
(Jean-François Revel, A Grande Parada)

Globo, Bom Dia Brasil, 3 de julho de 2018. Em reportagem sobre Moscou, capital da Copa, a repórter Ana Paula Araújo pedala com sua bicicleta pela cidade. Ao passar por uma ponte, tendo atrás de si a estátua de Pedro, O Grande, informa-nos que os moscovitas a detestam. A música incidental é agitada e descontraída. O texto, dito em tom leve e bem-humorado. Depois do corte, o cenário seguinte é o Parque Muzeon. A trilha sonora aqui é solene, e o cinegrafista exibe estátuas de Vladimir Lenin em primeiro plano. Ana Paula lê o texto em off, num tom sério, que contrasta com o da tomada imediatamente anterior: “Nos jardins do Muzeon, as estátuas lembram o passado comunista. Lenin, criador da União Soviética, tem 82 estátuas espalhadas por Moscou. De Stalin, o ditador, só sobrou essa”. E a imagem é a de uma estátua de Stalin com o nariz quebrado.

Por mais prosaico seja o episódio acima descrito, nele já se pode intuir a ação de uma velha cultura política de esquerda dando forma à reportagem, que, à primeira vista, parece ser não apenas neutra como também inócua. Não há, decerto, qualquer motivo para supor que a repórter seja comunista, nem tampouco que tenha havido alguma motivação ideológica intencional na finalização da matéria. E é justamente por isso que sua análise se torna mais interessante, e também por isso que emprego o termo técnico cultura política para caracterizar o seu contexto.

Uma cultura é, por definição, um ambiente total, que envolve o indivíduo por todos os lados, conformando as suas dimensões cognitiva, psíquica, emocional, social e histórica, levando-o a reproduzir certos comportamentos – incluindo os de natureza política – de maneira automática e, em ampla medida, inconsciente. Assim como não escolhemos nossa língua materna, frequentemente não escolhemos racionalmente a linguagem política que usamos, herdada que foi do nosso meio cultural, e por meio da qual comunicamos determinadas mensagens, mesmo que à nossa revelia. São mensagens involuntárias como essa, aliás, as mais nocivas ao bom jornalismo, muito mais que as decorrentes do viés político explícito desse ou daquele jornalista, e que, há alguns dias, levaram João Roberto Marinho, presidente do Grupo Globo, a enviar aos seus funcionários diretrizes sobre o uso de rede sociais. O viés sutilmente determinado pela cultura política de esquerda nos estúdios e redações escapa completamente ao radar dos empresários das comunicações (supondo, é claro, que isso realmente os incomode).

Muito provavelmente, portanto, os autores da referida matéria não tinham noção de que, ao opor Stalin e Lenin – o primeiro como ditador de reputação histórica tão gasta quanto sua estátua; o segundo, como símbolo de um imaculado idealismo revolucionário, tão imperecível quanto o bronze de sua tez nos ídolos do Muzeon –, tudo o que faziam era reproduzir uma velha estratégia esquerdista de fazer de Stalin o bode expiatório sobre o qual lançar todos os pecados do comunismo, purificando a memória de pais fundadores como Lenin, e resgatando o ideal revolucionário de sua desgraçada aparição histórica. Como observou Alain Besançon em A Infelicidade do Século: “Cada experiência comunista é recomeçada na inocência”.

Aquela estratégia já estava presente em fevereiro de 1956, no famigerado discurso secreto de Kruschev, em que o Sr. Djugashvili aparece como traidor dos ideais do Sr. Ulyanov. E está aí até hoje no imaginário da esquerda mundial, e em especial no Brasil, onde uma tragicômica presidente da República discursou orgulhosamente sob uma monumental fotografia deste, enquanto um vetusto jornalista sovietófilo teve a pachorra de situar aquele na banda direita do espectro político. Uma terceira figura, badalado sociólogo marxista, foi ainda mais longe, ao afirmar, sem ruborescer, que a história do socialismo ainda nem havia começado. Esqueçam Lenin, Stalin, os gulags, o Holodomor; esqueçam Mao Tsé-tung e os seus 80 milhões de cadáveres; esqueçam Pol Pot e o Khmer Vermelho; esqueçam Ceaușescu; esqueçam Fidel Castro e seus paredões de fuzilamento; esqueçam a Coreia do Norte e seus campos de concentração; esqueçam a Venezuela, sua miséria e seus presos políticos. Nada disso foi socialismo, garantia-nos o apparatchik disfarçado de cientista social.

Ocorre que, ao contrário do cristianismo, organismo hospedeiro que busca parasitar, o comunismo não nasceu de moça virgem, mas de meretriz encarquilhada e sifilítica. Nos dias correntes, não há pesquisador sério que subscreva essa visão romântica e idealizada de Lenin, e muito menos sua dissociação dos crimes de Stalin. Pensemos, por exemplo, no grande historiador Richard Pipes, autor de estudos consagrados sobre o bolchevismo, dentre os quais uma densa pesquisa com base nos quase 7 mil manuscritos inéditos de Lenin, tornados públicos em 1991, com o colapso da União Soviética, e que revelam um líder bolchevique cruel, cínico e desumano, verdadeiro modelo para o estilo de seu sucessor, Josef Stalin.

Pipes é categórico: “No que diz respeito à personalidade de Lenin, notamos de imediato o seu completo desprezo pela vida humana, exceto em relação à sua própria família e aliados próximos”. Questionando o mito segundo o qual Lenin nutria profundo desprezo por Stalin, diz-nos o autor: “Há uma série de evidências de sua confiança em Stalin, não apenas na condução da política cotidiana, como também no estabelecimento de grandes metas políticas. Temos acesso às notas em que ele consultava Stalin sobre um sem-número de assuntos”. Documentos mostram também a sua indiferença para com o sofrimento de companheiros de ideologia. Quando judeus comunistas lhe enviaram cartas com notícias dos pogroms perpetrados pelo Exército Vermelho em sua retirada da Polônia, Lenin rabiscou-as com os dizeres: “Arquive-se”. Quando Dzerzhinsky, comandante da Cheka (a polícia secreta bolchevique), informou-lhe que 100 mil prisioneiros de guerra do Exército Branco eram mantidos em campos de detenção sob condições desumanas, a reação foi a mesma: “Arquive-se”.

Em conhecida diretiva às autoridades bolcheviques da província de Penza, onde camponeses (“kulaks”) se insurgiam contra a política de confisco de grãos, Lenin ordenou: “O levante deve ser reprimido de maneira inclemente. Devemos dar o exemplo. Enforquem publicamente não menos do que uma centena de kulaks, homens ricos e sanguessugas. Divulguem os seus nomes. Confisquem-lhes todos os grãos. Façam de tal modo que, num raio de centenas de quilômetros, as pessoas vejam, tremam, saibam e gritem: estão estrangulando, e irão estrangular até a morte, os sanguessugas kulaks”.

Roberto Gellately, outro reconhecido pesquisador da história europeia do século 20, conta de sua reticência inicial em incluir o nome de Lenin ao lado dos de Stalin e Hitler em seu estudo comparativo sobre os movimentos totalitários de massa. Na medida, contudo, em que aprofundava a pesquisa que deu origem ao livro Lenin, Stalin e Hittler: a era da catástrofe social, percebeu a imperiosa necessidade de voltar aos momentos fundadores da ditadura do proletariado. Conforme explica: “Tem sido frequente a representação de Lenin como pai fundador sábio e prudente, ou no mínimo bem-intencionado, cuja visão foi poluída pelo assassino Stalin. No entanto, ele é central não apenas para a fundação do comunismo soviético como também para os seus desenvolvimentos futuros”. Gellately acrescenta que, ademais de fundar o movimento, ele foi o principal proponente do regime de partido único, dos campos de concentração e do terror. Logo nos dias seguintes ao golpe de outubro, Lenin insistiu na necessidade de supressão de direitos civis e legais. Semanas depois, concebeu a Cheka. “Stalin não inaugurou quase nada que Lenin já não tivesse introduzido e previsto. Foi o seu sucessor lógico, orgulhando-se de ser um legítimo discípulo” – continua o autor. “O mito do ‘bom Lenin’ – o salvador – foi erguido desde cedo na cultura política da União Soviética, e, espertamente, Stalin usou-o em benefício próprio. Lenin era, de fato, cruel e implacável. Mesmo a cúpula dos bolcheviques recuava em face de sua ferocidade e das execuções que comandava sem qualquer escrúpulo. Devemos compreender a figura do ‘bom Lenin’ como um instrumento político, talhado para inspirar seguidores em casa e alhures”.

Percebe-se o quão eficaz foi aquele instrumento político quando, um século depois, e em seu berço de origem, jornalistas brasileiros continuam a reproduzi-lo sem nem sequer imaginar que o fazem. Tratam o ditador Lenin (sim, Ana Paula Araújo, ele também o foi) com aquela mesma reverência indecente que usaram para falar de Fidel Castro por ocasião de sua morte. E assim tratam ambos os ditadores porque aprenderam, nos bancos escolares e universitários, que os horrores perpetrados pelo comunismo foram meros acidentes de percurso, desvios circunstanciais de uma utopia que, em última instância, permanece bela e moral. Pedalando por Moscou, decerto sentem aquela nostalgia pelo não vivido, e sonham com as belas imagens que viram nos filmes de Serguei Eisenstein, o cineasta propagandista do regime. Não percebem que, na rigidez perpétua de seu bronze, a estátua mira-os cinicamente e, rindo-se qual uma Mona Lisa diante dos turistas no Louvre, pensa lá com os botões de seu sobretudo: “Ah, meus inocentes úteis. Ah, meus inocentes úteis!”

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