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Faixa de Gaza - Menahem Kahana/AFP
Faixa de Gaza - Menahem Kahana/AFP| Foto:

“Não estamos falando apenas de mau jornalismo. Estamos falando de um jornalismo que funciona como ferramenta de uma organização terrorista, o Hamas: forçando esbaforidamente sua narrativa, seja por medo de suas ameaças, simpatia por sua causa ou pura ignorância” (Gary Weiss, jornalista americano)

Em 19 julho de 2000, por ocasião da retirada das forças israelenses do sul do Líbano, o jornalista John Kifner publicou no The New York Times uma matéria sobre os mais recentes avanços das estratégias do Hezbollah em sua luta contra Israel. Nela, Kifner fazia menção à entrevista que o xeique Nabil Qaouk, então comandante do grupo terrorista xiita, concedera a um grande veículo de comunicação do Ocidente. “O uso da mídia como arma tem um efeito paralelo ao de uma batalha”, disse Qaouk na ocasião, fornecendo detalhes sobre como haviam dominado a técnica de filmagem e distribuição de seu material de propaganda para a imprensa. “Mediante o uso dessas imagens, fomos capazes de controlar à distância o moral do inimigo”, concluiu, enfatizando como a campanha de desmoralização de Israel aos olhos do mundo fora decisiva para aquela vitória.

As palavras de Nabil Qaouk levantam uma pontinha do véu que encobre uma realidade perturbadora: no conflito árabe-israelense, a grande imprensa do Ocidente, de modo mais ou menos intencional, e mais ou menos explícito, tem agido de maneira parcial e enviesada contra Israel. Esse viés é especialmente nítido na cobertura jornalística dos conflitos em Gaza, em que os holofotes se voltam exclusivamente para Israel, retratado como o grande vilão da história, sem que suas ações militares sejam contextualizadas, e sem que jamais venham a ser conhecidas do público as agressões prévias que as motivaram. Como resumiu certa feita Gary Weiss, experiente jornalista investigativo americano, o que temos em Gaza é uma verdadeira “intifada midiática”, na qual os jornalistas ocidentais “tornaram-se parte da máquina de guerra do Hamas”. Não é mera coincidência que, nos últimos anos, o mais importante correspondente do New York Times e da Associated Press em Gaza tenha sido Fares Akram, sujeito que ostentava em seu perfil do Facebook a foto de ninguém menos que Yasser Arafat.

Há muitas razões para a intifada midiática contra Israel e todas giram em torno da ideia de guerra assimétrica. Na definição do estrategista militar suíço Jacques Baud, um dos maiores estudiosos do fenômeno: “Ação do fraco contra o forte, a guerra assimétrica é um confronto entre dois sistemas políticos, sociais, culturais e organizacionais que obedecem a lógicas distintas. As estratégias assimétricas trazem uma dimensão nova à arte da guerra. Enquanto que, nos conflitos simétricos, a vitória se constrói de modo quase linear sobre os próprios sucessos táticos, nos conflitos assimétricos o sucesso estratégico se constrói sobre os sucessos táticos do adversário (…) Nas guerras assimétricas, o sucesso não está associado ao número de mortos, mas à reação provocada pela destruição”.

Dado que a supremacia militar israelense sobre o Hamas é incontestável – as IDF (Israeli Defense Forces) possuem armamento mais potente, tecnologia mais desenvolvida e um serviço de inteligência incomparavelmente mais qualificado –, o grupo terrorista que controla Gaza não tem por objetivo conquistar uma vitória militar que sabe ser impossível. O que pretende, em vez disso, é obter o reconhecimento e a legitimidade para sentar à mesa de negociações na condição de ator político como qualquer outro, no quem tem sido muito bem-sucedido, dominando a arte da guerra assimétrica como poucos.

O Hamas sabe que jamais será cobrado de acordo com os parâmetros pelos quais o estado judeu é cobrado. Diferente de Israel (cujo exército é aquele que mais faz no mundo para evitar a morte de civis, segundo testemunho do coronel Richard Kemp, ex-comandante das forças britânicas no Afeganistão), o grupo terrorista não tem, evidentemente, qualquer compromisso em poupar vidas inocentes. Ao contrário, como admitiu o próprio Arafat pouco antes de morrer, o sacrifício de mulheres e crianças é benéfico para a causa palestina, da qual a imprensa mundial tem sido o instrumento.

Para a sorte dos leitores interessados na verdade, o viés midiático anti-Israel tem despertado a indignação de alguns poucos e corajosos jornalistas internacionais, quase todos veteranos que, driblando as armadilhas do corporativismo, nos brindam com críticas contundentes ao trabalho de seus colegas. É o caso, por exemplo, de Michael S. Malone, consagrado jornalista americano da ABC News, com passagens pelo New York Times, Wall Street Journal, Forbes e Los Angeles Times. Em artigo de 2008, que tratava da inclinação pró-Obama da imprensa americana, Malone confessava dolorosamente a sua vergonha em se assumir jornalista nos tempos atuais. E foi justamente uma cobertura sobre o conflito árabe-israelense que começou a abalar a sua a fé na profissão herdada dos avós.

Tratava-se especificamente da Guerra do Líbano de 2006, e o repórter veterano assistia ao noticiário televisivo num quarto de hotel: “O hotel em que eu estava em Windhoek, na Namíbia, só sintonizava a CNN, uma emissora que eu já aprendera a abordar com ceticismo. Mas ali se tratava da CNN internacional, o que era pior. Estava ali sentado, primeiro de queixo caído, e logo em seguida gritando para a televisão, enquanto um correspondente após o outro reportava a carnificina dos ataques israelenses em Beirute, sem praticamente nenhuma notícia complementar da chuva de mísseis lançados pelo Hezbollah sobre o norte de Israel. A matéria era tão completa e vergonhosamente tendenciosa que eu permaneci horas assistindo, imaginando que, eventualmente, a CNN fosse em algum momento contar toda a história… Mas ela não o fez”.

Matti Friedman, ex-correspondente da Associated Press, que atuou no escritório da agência em Jerusalém por mais de cinco anos, dá um depoimento que vai no mesmo sentido. Ressalta, antes de tudo, a atenção desproporcional dedicada pela imprensa ao conflito entre Israel e Palestina, sobretudo se comparada à que se devota a outros conflitos ao redor do planeta, grande parte dos quais, inclusive, bem mais sangrentos que aquele. Essa atenção, diz Friedman, pode ser aferida pelo tamanho do staff de jornalistas mobilizado para cobrir os incidentes na faixa de Gaza, sempre muito acima da média. Aparentemente, as agências internacionais de notícias decidiram que o conflito israelo-palestino é a história mais importante a ser contada, importância que se deve exclusivamente a Israel, já que a cobertura midiática raramente se dedica a uma análise aprofundada da sociedade e da cultura palestinas, de seus grupos armados ou de seu governo.

Nada se publica, por exemplo, sobre a corrupção entre os membros da Autoridade Palestina, um assunto que interessa à população de Gaza. Quando, certa vez, Friedman e um colega sugeriram essa pauta, foram informados pelo diretor de redação de que ela não interessava à agência (que, em compensação, já publicara dezenas de matérias sobre a corrupção israelense). Enquanto Israel vive, pois, sob incessante escrutínio midiático, seus inimigos gozam de confortável invisibilidade. Na imprensa mundial, o leitor procurará em vão por matérias que mencionem o estatuto do Hamas, no qual a extinção do estado de Israel e o extermínio dos judeus são propostos abertamente. Ou por informações acerca da recorrente prática do grupo terrorista de instalar alvos militares (tais como lança-foguetes) em meio a prédios civis, especialmente próximos a escolas e hospitais, de modo a provocar deliberadamente uma tragédia humanitária que lhe possa ser útil como propaganda anti-Israel. E se é verdade que, em parte, o Hamas obtém a cumplicidade midiática por meio da intimidação e da violência contra repórteres estrangeiros, também é fato que, em larga medida, a imprensa ocidental colabora voluntariamente para a distorção da realidade.

Por um lado, as agências de notícias são muito dependentes dos assistentes palestinos que acompanham os correspondentes na zona de conflito, seja como tradutores, seja como fontes, ou mesmo como fornecedores de material audiovisual. “Segundo minhas estimativas”, escreveu o jornalista israelense Ehud Yaari, “mais de 95% das imagens transmitidas todas as noites via satélite aos diversos canais estrangeiros e israelenses são fornecidas por equipes de filmagem palestinas. As duas principais agências no mercado de telenotícias, APTN e rede de TV Reuters, contam com toda uma rede de correspondentes e freelancers palestinos por todos os territórios para fornecer a cobertura dos acontecimentos ao vivo. Essas equipes, obviamente, se identificam emocional e politicamente com a intifada e, na melhor das hipóteses, simplesmente não se atrevem a filmar algo que possa comprometer a Autoridade Palestina. Assim, as câmaras são colocadas de maneira a mostrar uma visão distorcida das ações do exército israelense, nunca enfocam os atiradores palestinos e, com muito cuidado, produzem um tipo muito específico de primeiro plano da situação”.

Por outro lado, a abordagem anti-Israel da imprensa tem uma causa ideológica evidente, relacionada à visão de mundo mais ou menos hegemônica nas faculdades de jornalismo ao redor do mundo desde os anos 1960, quando uma ideologia anticolonialista adaptada do marxismo dividiu as nações do mundo em “exploradoras” e “exploradas”, cabendo aos repórteres-ativistas a missão autoatribuída de porta-vozes destas últimas. Daí que, no caso de que vamos tratando, os repórteres-ativistas não se interessem pela Palestina real e tampouco pelos problemas enfrentados pelos palestinos que não tenham relação direta com Israel. “O fato é que a intimidação do Hamas está fora de questão porque as ações dos palestinos estão fora de questão” – resume Friedman. “A maioria dos repórteres em Gaza acreditam que o seu trabalho é documentar a violência praticada por Israel contra civis palestinos. Eis a essência da narrativa”.

Mas, se a Palestina da imprensa é uma obra de ficção talhada para servir de arma na campanha de desmoralização de Israel, a nação ‘exploradora’, é apenas porque a Palestina histórica também o é, tendo por função única e exclusiva a de ser um pretexto para o antissemitismo islâmico. E, se o leitor está espantando com a afirmação, devo esclarecer que não a tirei da caixola. Foi Zahir Mushe’in, então membro do Comitê Executivo da OLP, quem confessou em 1977 ao jornal holandês Trouw: “O povo palestino não existe. A criação de um Estado palestino é apenas um meio de continuarmos nossa luta contra Israel e pela unidade árabe (…) Apenas por razões táticas e políticas falamos hoje sobre a existência de um povo palestino (…) Por razões táticas, a Jordânia, um estado soberano com fronteiras definidas, não pode requerer o controle de Haifa e Jaffa, mas enquanto ‘palestino’, eu posso certamente demandar Haifa, Jaffa, Beer-Sheva e Jerusalém”.

A invenção do “povo palestino” é um processo interminável, construído cotidianamente nos fóruns internacionais, na academia e na imprensa. Assenta-se sobre uma mitologia de origem, que conta a história de um paraíso terreno, sem sinal de penúria, fome ou injustiça, habitado por um povo feliz e saudável vivendo em harmonia com a natureza. Um belo dia, o paraíso é invadido pelos cruéis sionistas, que, apoiados pelos poderosos ingleses (e, mais tarde, pelos “estadunidenses”), roubam a terra, exilam o seu povo e dão início a um reino de terror e limpeza étnica que perdura até os dias de hoje. Pode parecer piada, mas essa versão mitopoética inspira muito da cobertura jornalística contemporânea – incluindo, evidentemente, a do Brasil, país em que boa parte da imprensa tem como xodó o PSol, partido notoriamente antissemita, que recentemente tentou impedir a presença de representantes de Israel na última Parada Gay em São Paulo, acusando o país de praticar “apartheid” e “genocídio” contra o povo palestino. O fato é que muitos dos responsáveis por decidir o que iremos ler ou ver da região (dentre eles um número expressivo de psolistas de carteirinha) não concebem seu trabalho como informativo, mas como essencialmente político. A cobertura torna-se uma arma a serviço da causa que defendem. Para essa causa, é indispensável que os palestinos apareçam sempre como vítimas; Israel, sempre como agressor.

Tivéramos de escolher um símbolo pictórico para representar a intifada midiática, seria ele um desenho do cartunista engajado Carlos Latuff, um queridinho da esquerda carioca. Latuff, que, junto com mais 20 colegas brasileiros, foi premiado num concurso de charges antissemitas patrocinado por um jornal iraniano, retratou certa vez a seguinte cena: um menino palestino, com um ursinho de pelúcia na mão, encara um monstruoso helicóptero israelense que lança um míssil em sua direção. Na sombra projetada pelo menino, lemos a palavra “Gaza”. O desenho remete a um velho tropo antissemita, recorrente, por exemplo, na iconografia da propaganda nazista: o monstro sanguessuga judeu assediando a inocência infantil. O quadro, centrado na perspectiva da criança, omite convenientemente um personagem que apenas uma ampliação de foco poderia revelar: o Hamas, que, de uma posição de retaguarda, empurra a vítima inocente para a morte. E omite também, é claro, a presença das crianças judias no outro lado da fronteira, tão inocentes quanto a outra, e que vivem sob o pânico constante provocado pelos mísseis dos terroristas palestinos. A omissão de Latuff é, no terreno da charge, a mesma omissão da imprensa, no terreno do texto. Ambos, charge e texto, surrupiam do público peças cruciais do quebra-cabeça geopolítico da região, deixando claro que, em vez de informar, o seu propósito último é mesmo manipular.

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