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Censura prospera na cultura do cancelamento
Censura prospera na cultura do cancelamento.| Foto: BigStock

“Em qualquer momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de ideias que se supõe que todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar... Quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia” (George Orwell, A Liberdade de Imprensa, 1945)

Tenho dito – e escrito – que o politicamente correto deve ser entendido como uma patologia ética, e não estética. Insisto nisso porque no Brasil a crítica ao fenômeno, quando ocorre, se dá sempre numa clave estetista, como se lidássemos com algo meramente “chato”, “brega” ou “cafona” (adjetivos que um Luiz Felipe Pondé, por exemplo, adora lhe atribuir).

Quanto mais o tempo passa, mais parece dar razão aos diagnósticos de Mário Vieira de Mello e José Osvaldo de Meira Penna, que classificaram a mentalidade brasileira de, respectivamente, “estetista” e “lúdica”. Mário, em particular, alertava já na década de 1960 para a incapacidade da intelligentsia nacional em lidar com discussões filosóficas no campo da ética, e a tendência a deslocar qualquer dicotomia de tipo certo x errado (ou bem x mal) para dicotomias de tipo gosto x não gosto (ou bonito x feio).

O politicamente correto – e esse seu rebento contemporâneo, a cultura do cancelamento – é herdeiro do aparato comunista de polícia do pensamento

O debate sobre o politicamente correto não foge à regra. Por aqui, quase ninguém parece capaz de notar que o problema do ativismo politicamente correto não é o de ser bobo, feio, chato e cara-de-mamão, mas o de ser mau. Uma das manifestações atuais dessa malignidade é a abominável “cultura do cancelamento” – sendo cancelamento, aí, nada menos que um eufemismo para paredão digital de fuzilamento, pois o cancelado, sumariamente condenado por crime de opinião, tem negado o direito elementar à existência nas redes. Surgiram, inclusive, milícias especializadas em “cancelamento”, que agem, no ambiente virtual, como a Guarda Vermelha maoísta, a NKVD de Stalin ou os camisas-negras nazifascistas. Eis o exemplo desse obscuro “Sleeping Giants”, movimento extremista de esquerda que se esconde no anonimato para promover campanhas de assassinato de reputação e desmonetização daqueles que vê como adversários políticos, a exemplo do filósofo Olavo de Carvalho.

O politicamente correto – e esse seu rebento contemporâneo, a cultura do cancelamento – é herdeiro do aparato comunista de polícia do pensamento. Dentre os muitos autores que o notaram, podemos destacar, por exemplo, a escritora Doris Lessing, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura no ano de 2007. No artigo Questions You Should Never Ask a Writer (1992), Lessing escreveu: “Embora tenhamos assistido à aparente morte do comunismo, modos de pensar nascidos sob o comunismo, ou por ele reforçados, ainda regem as nossas vidas. Dentre eles, nenhum é tão imediatamente evidente quanto o politicamente correto”.

Mais tarde, no ensaio Censorship and the Climate of Opinion (2001), ela retornou ao tema nos seguintes termos: “A submissão ao novo credo não teria se dado tão rápida e profundamente se a rigidez comunista não tivesse, por toda parte, permeado as classes letradas, pois não era preciso ser um comunista para absorver o imperativo de controlar e limitar: as mentalidades já haviam sido amplamente expostas à ideia de que o livre pensamento e as artes criativas deveriam submeter-se às altas autoridades da política”.

No Brasil, a cultura do cancelamento foi inventada pela esquerda (comunista e pós-comunista) nos anos 1960. Em suas colunas no jornal O Globo, Nélson Rodrigues testemunhou e registrou o surgimento do fenômeno (cujo episódio mais conhecido talvez tenha sido a perseguição sofrida pelo cantor Wilson Simonal). O dramaturgo espantou-se particularmente com o tratamento dado pelas esquerdas ao escritor católico Gustavo Corção: “Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É toda uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, as câmaras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção. É inédita essa capacidade promocional das esquerdas. Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncio em cima dele”.

E o próprio Nélson – hoje celebrado e deturpado por muitos esquerdistas – sofreu na pele os efeitos da perversão ética do politicamente correto, com sua notória indignação seletiva e duplo padrão moral: “Minha vida autoral tem sido difícil. Ao longo de minha vida, cinco peças minhas foram interditadas; recentemente, caçaram a pauladas um romance meu. Nunca as esquerdas exalaram um suspiro em meu favor; nunca os nossos intelectuais libertários fizeram um manifesto contra as miseráveis interdições... Tenho vinte e tantos anos de vida autoral e sofri seis interdições (cinco peças e um romance). Por uma singular coincidência, nas seis oportunidades, não mereci a solidariedade de ninguém. Álvaro Lins, em plena atividade crítica, limitou-se a dizer: – ‘Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um caso de polícia’. Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade à polícia”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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