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“A sua fisionomia não exprimia a menor ironia, nem sombra de uma reflexão; lia-se nela apenas a sua estúpida predileção pelo que supunha ser o seu direito e, ao mesmo tempo, uma estranha e incessante necessidade de se sentir sempre ofendido por qualquer coisa” (Dostoievski, O Idiota)

Se vivo fosse, após miraculosa ressurreição, é provável que Dante Alighieri reeditasse a sua Divina Comédia, reservando um círculo especial do inferno ao politicamente correto. Se, além de renascer das cinzas, calhasse o ilustre ressuscitado de tê-lo feito no Brasil, o novo ciclo infernal haveria de exibir na entrada, sobre o pórtico frontal, uma placa em que se reproduzisse na íntegra, e no vernáculo, o diálogo virtual entre o namorado da Fátima Bernardes, a cantora Maria Gadu e o ator Dado Dolabella, um diálogo que poderia igualmente figurar nas obras magnas de Carlos Zéfiro.

Namorado da Fátima Bernardes: – Namorada boa é aquela que tá (sic) contigo até na hora de ordenhar a vaquinha.

Maria Gadu: – 2 (sic) casos graves de machismo. Namorada boa é namorada que nao (sic) se condiciona a especifismo algum. nao (sic) existe: namorada boa é a que… bla bla bla. 2 (sic) vaca é feminino e mexer nas tetas tb (sic) te coloca numa situação delicada. Sem contar as condições e abusos cruéis. Vamos indo juntos até onde?

Dado Dolabella: – Deixem os animais em paz!

Kyrie eleison! Mas divago em elucubrações inúteis, porque – eis o que eu queria dizer – em Harvard, centro intelectual do mundo, já não se lê Dante (prefere-se o rapper Tupac Shakur). Em Harvard, já não se acredita em inferno. Em Harvard, ademais, o politicamente correto foi decretado inexistente, após longamente estudado pela pesquisadora Moira Veigel, grande especialista, ao que parece, em objetos de estudo evanescentes. É o que nos informa a revista Época, fazendo-nos recordar o comentário imortal do veterano repórter da CBS Bernard Goldberg: “Um jornalista pode sempre encontrar um especialista para dizer qualquer coisa que ele queira”. Ou aquele outro, do profeta alagoano José Epaminondas Farinha: “Um idiota não é menos idiota por falar inglês”.

Na entrevista concedida à revista brasileira, a especialista em politicamente correto pôs-se a discorrer sobre o objeto inexistente nos seguintes termos: “Para mim, politicamente correto é um sinônimo de educação. Essa é minha definição… Realmente não acredito que o politicamente correto exista. Você pode perguntar: mas, então, a que as pessoas se referem quando usam esse termo? É à linguagem que usamos e aos cuidados que temos quando falamos para não ofender ninguém. O que existe são formas diferentes de diálogo, de discurso, à medida que a sociedade se desenvolve e diversifica… Quando isso acontece, a maneira como você fala também muda e você passa a se preocupar em não ofender os outros. Não existe nenhuma organização política secreta forçando as pessoas a falar de certa maneira”.

Encerrando sua altaneira lição aos primitivos, atribuiu à “extrema-direita” (na qual, para a alegria da entrevistadora, incluiu o presidente brasileiro Jair Bolsonaro) a invenção paranoica do politicamente correto e a sua identificação com o marxismo cultural, associando tudo isso, como não podia faltar (quer em Harvard, quer no mais obscuro bas-fond acadêmico do patropi), ao nazismo. Pronto! Checklist completo: defesa de “minorias” politicamente organizadas, ataques à direita e uma insinuada identificação entre Jair Bolsonaro e o nazismo. Não podia ser melhor. Com a pauta garantida, o pessoal da redação foi comemorar no barzinho mais próximo.

Apesar de não existir, todavia, o politicamente correto tem toda uma história a ser contada, e sua natureza é bem menos inocente, e ainda menos inócua, do que querem nos fazer crer a repórter da Época e a sua especialista prêt-à-porter, ambas prováveis entusiastas e praticantes da coisa que não existe, mas da qual falaremos ainda assim, recusando, mui gentilmente, o sutil cala-boca que nos foi proposto.

A expressão “politicamente correto” – ou, se traduzida ao pé da letra, “correção política” (political correctness) – apareceu nos EUA na virada das décadas de 1980 para 1990, desde onde partiu para conquistar o mundo. Seu sentido original era evidentemente derrogatório, funcionando como um rótulo sintético para uma série de tendências ultrarradicais observadas, inicialmente, nos meios escolares e universitários norte-americanos já nos anos de 1960 e 70, e que vinham na esteira da ideologia soixante-huitardista e contracultural, com os seus conhecidos “-ismos” (multiculturalismo, feminismo, pós-modernismo, pós-estruturalismo, desconstrucionismo, entre outros). Tratava-se, como observa Dinesh D’Souza em Illiberal Education: The Politics of Race and Sex on Campus, de uma avassaladora “revolução acadêmica”.

O pensamento politicamente correto combinava duas ideias básicas: do marxismo (em sua versão já frankfurtiana e gramsciana, ou seja, mais interessada na esfera da cultura que na da economia), absorveu o pressuposto de que o mundo se divide em classes antagônicas irredutivelmente inimigas, sendo elas os agentes fundamentais da história. A novidade era que, ao conceito de classe, somavam-se os de gênero e raça. A história já não era apenas a da luta de classes (ricos vs. pobres), mas também a da luta de raças (brancos vs. negros) e de gênero (homens vs. mulheres, héteros vs. gays, cis vs. trans). Do pragmatismo e do desconstrucionismo, incorporou a noção de que nada existe fora da linguagem, com a consequente sugestão de que é possível revolucionar a realidade por meio de uma revolução semântica. Os “opressores” – que, até então, haviam imposto à esfera da linguagem e da cultura os valores de sua classe-raça-gênero – deviam ser derrotados e substituídos pelos “oprimidos” mediante a imposição de novos padrões de fala e de comportamento.

Surgiram nesse contexto as chamadas “políticas de identidade’, segundo as quais as pessoas já não deviam ser percebidas à luz da tradição liberal – ou seja, como indivíduos únicos e insubstituíveis –, mas segundo uma lógica coletivista, como representantes permutáveis de determinada classe, raça ou gênero. A pergunta “quem é você?” já não deveria ser respondida com “eu sou Fulano de Tal” e ponto, mas com “eu sou Fulano de Tal, afroamericano, do sexo masculino”, ou “eu sou Sicrana, latina, do sexo feminino e lésbica”, e assim por diante. Nas grades curriculares de escolas e universidades, as disciplinas passaram a ser organizadas conforme esses critérios identitários –“história afroamericana”, “literatura gay”, “estudos Queer” etc. –, ministradas desde então como alternativa aos cursos tradicionais, tidos por culturalmente colonialistas e reacionários. Nem a morfologia das palavras resistiu à sanha revolucionária dos politicamente corretos, que passaram a esmiuçá-las em busca de marcas de opressão. Por incrível que pareça, feministas chegaram a propor a substituição da palavra “history” por “herstory”: a história já não seria mais monopólio do abominável macho, caucasiano e heterossexual, passando agora às mãos da fêmea, não caucasiana e, por suposto, lésbica.

Nos EUA e na Europa, as críticas ao politicamente correto não tardaram a surgir. E, ao contrário do que ocorreu no Brasil – onde foram praticamente banidas no interior da academia –, partiram inicialmente de intelectuais e acadêmicos do campo conservador, que se dedicaram a pesquisar seriamente o assunto e a refletir sobre as suas consequências. O livro de Dinesh D’Souza mencionado há pouco tornou-se um best-seller, assim como o pioneiro The Closing of the American Mind, do filósofo classicista Allan Bloom, que Camille Paglia definiu como “o primeiro disparo nas guerras culturais americanas”.

Seguiram-se diversas obras sobre o assunto, das quais destaco Tenured Radicals: How Politics has Corrupted Our Higher Education, de Roger Kimball; The Retreat of Reason: Political Correctness and the Corruption of Public Debate in Modern Britain, de David Conway e Anthony Browne; Political Correctness: A History of Semantics and Culture, de Geoffrey Hughes; We’re (Nearly) All Victims Now! How political correctness is undermining our liberal culture, de David G. Green; The Genesis of Political Correctness: The Basis of a False Morality, de Michael William; The Shadow University: The Betrayal of Liberty on America’s Campuses, de Alan C. Kors e Harvey A. Silverglate; e The Victim’s Revolution: The Rise of Identity Studies and the Closing of the Liberal Mind, de Bruce Bawer.

Mas, muito antes desses e de outros títulos especializados, alguns pesos-pesados da literatura de língua inglesa, como Doris Lessing e George Orwell, já haviam percebido e denunciado os males do politicamente correto. Por exemplo, no ensaio intitulado “Censorship and the Climate of Opinion” (2001) – escrito como prefácio a Censorship: a World Encyclopedia, editada por Derek Jones –, Lessing dispara: “A mais poderosa tirania mental no que chamamos de mundo livre é o politicamente correto, que é tanto e imediatamente evidente, observado em toda parte, quanto invisível, qual um gás venenoso, pois suas influências estão frequentemente distantes da fonte originária, manifestando-se como uma intolerância generalizada”.

A especialista de bolso da revista Época talvez a chamasse de extremista de direita por causa disso, mas, para a autora de The Golden Notebook (novela que, curiosamente, acabou se tornando um ícone do feminismo, mesmo contra a vontade da escritora), o politicamente correto tem, sim, uma relação perceptível com o marxismo e, mais diretamente, com o comunismo soviético, célebre por seu aparato técnico de lavagem cerebral e polícia de pensamento. Nas palavras da Nobel de Literatura de 2007: “A submissão ao novo credo não teria se dado tão rápida e profundamente se a rigidez comunista não tivesse, por toda parte, permeado as classes letradas, pois não era preciso ser um comunista para absorver o imperativo de controlar e limitar: as mentalidades já haviam sido amplamente expostas à ideia de que o livre pensamento e as artes criativas deveriam submeter-se às altas autoridades da política”.

Em outra ocasião, em artigo reproduzido no The New York Times sob o título “Questions You Should Never Ask a Writer”, Lessing foi ainda mais explícita: “Embora tenhamos assistido à aparente morte do comunismo, modos de pensar nascidos sob o comunismo, ou por ele reforçados, ainda regem as nossas vidas. Dentre eles, nenhum é tão imediatamente evidente quanto o politicamente correto. O primeiro ponto: a linguagem. É consabido que os comunistas degradaram a linguagem e, com ela, o pensamento”.

Antecipando Doris Lessing, George Orwell já vislumbrara um mundo em que um mecanismo análogo ao politicamente correto era empregado pelo partido totalitário Ingsoc, de 1984, para controlar a linguagem pública e, então, progressivamente, o pensamento das pessoas. Já no texto “A Liberdade de Imprensa” (1945), prefácio original de A Revolução dos Bichos, Orwell identificava a característica mais perturbadora dessa nova forma de totalitarismo: a autocastração intelectual. Em suas palavras: “O fato sinistro em relação à censura literária na Inglaterra é que ela é, em grande medida, voluntária. Ideias impopulares podem ser silenciadas, e fatos inconvenientes mantidos no escuro, sem a necessidade de uma proibição oficial. Quem morou muito tempo num país estrangeiro saberá de exemplos de notícias sensacionais – coisas que, por seus próprios méritos, deveriam ganhar as manchetes – que ficaram de fora da imprensa britânica, não porque o governo interveio, mas devido a um acordo tácito geral de que ‘não seria conveniente’ mencionar aquele fato em particular”.

Como, lendo isso, não pensar imediatamente no que acontece na imprensa e na academia brasileiras, nas quais esses acordos tácitos em prol do silêncio conveniente vigoram com tanta frequência? Orwell parece justamente descrevê-las quando, linhas adiante, acrescenta: “Em qualquer momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de ideias que se supõe que todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas é ‘impróprio’ dizê-lo, assim como na época vitoriana era ‘impróprio’ mencionar calças na presença de uma senhora. Quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia. Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma atenção justa, seja na imprensa popular ou nos ditos periódicos cultos… A intelligentsia literária e científica – as próprias pessoas que deveriam ser os guardiões da liberdade – começa a desprezá-la, tanto na teoria quanto na prática”.

De toda essa herança crítica ao politicamente correto, pode-se extrair uma característica comum: diferente do que ocorre no Brasil – onde o politicamente correto tende a ser criticado numa chave estética (em autores como Luiz Felipe Pondé, por exemplo), como se meramente “chato” ou “cafona” –, os intelectuais acima citados lidaram com as implicações dessa ideologia no terreno da ética. Baseados nas transformações radicais que vinham observando, e cada qual a seu modo, eles sugeriram que, não obstante as possíveis boas intenções de alguns de seus propositores, o politicamente correto promove, na prática, uma série de injustiças e distorções de valor. Nessa leitura, o discurso politicamente correto aparece como uma cópia de segunda mão – pois que meramente formal, seletiva e talhada para a ostentação pública – do autêntico senso de justiça. Trata-se de uma corrupção político-ideológica da ética, pela qual se julga conforme categorias ideais previamente definidas como culpadas ou inocentes, não de acordo com a realidade observável. Assim, se alguém classificado de antemão como inocente no tribunal da história comete alguma injustiça ou violência contra alguém classificado como culpado, a rigidez interpretativa do politicamente correto não lhe permite abandonar o critério.

“Oprimidos” serão sempre “oprimidos”, mesmo quando oprimem. “Opressores” serão sempre “opressores”, mesmo quando vítimas de opressão. Racistas não são os que cometem racismo, mas os que pertencem à categoria imutável dos racistas apriorísticos. Agressores não são os que cometem agressão, mas os que, prévia e inexoravelmente, foram incluídos na categoria dos agressores. Um negro que discrimine racialmente um branco não é racista, como o seria um branco que discriminasse um negro. Não há exagero algum no que digo. Adeptos do politicamente correto dizem essas coisas e agem o tempo todo com base nesse critério. Quem não lembra, por exemplo, da secretária da Igualdade Racial na era Lula dizendo achar natural que um negro não quisesse conviver com um branco? E da entidade estudantil londrina exigindo – os politicamente corretos nunca pedem, sempre exigem – que Platão, Descartes e Kant fossem banidos do currículo de Filosofia por serem “brancos”?

Eis aí o suprassumo do politicamente correto, que, portanto, ao contrário do que diz a estudiosa de Harvard, nada tem a ver com “educação” ou com “não ofender os outros”, mas única e exclusivamente com poder – o poder, reivindicado e conquistado por alguns grupos politicamente organizados, de se sentir ofendidos por qualquer coisa e, com base nessa percepção subjetiva, exercer o direito revolucionário (hoje, em larga medida, convertido formalmente em lei) de ofender os outros impunemente, bem como de silenciá-los e até de agredi-los.

Como crianças mimadas que, a cada birra feita, ganhassem um brinquedo novo, os beneficiários do politicamente correto, paparicados pela mídia e pela intelligentsia, avançam sobre a liberdade alheia a cada nova exibição de autovitimização. E, quanto mais reproduzem essa mímica grotesca do senso usual de justiça, mais convictos estão da bondade de suas almas, e mais histéricos bradam aos quatro ventos a absoluta urgência da adoção da sua ética corrompida. Em transe, com os olhos vidrados de um êxtase quase religioso, lançam-se sobre os críticos, classificados naturalmente, pela própria lógica fácil do esquematismo mental, como inimigos da justiça e do bem.

Em suma: posto que inexistente – de que já estamos informados –, o politicamente correto não é pernicioso por ferir o bom gosto ou coisa que o valha, mas por ser intrinsecamente injusto e capaz de promover efeitos trágicos, consagrando a conveniência política como critério de juízo moral. Seus entusiastas não devem ser cobrados numa chave estética, mas numa chave ética. Seu problema não é apenas o de serem chatos ou cafonas, mas inconsequentes e irresponsáveis, tentando suprir com voluntarismo moralista as exigências de uma consciência madura.

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