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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Liberdade de expressão

Alexandre de Moraes e a longa mão (boba) da Constituição americana

Alexandre de Moraes justiça americana
O ministro Alexandre de Moraes na sessão plenária do STF de 12 de junho. (Foto: Ton Molina/STF)

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“O homem despojado de suas vestes não é mais que um pobre, nu, bifurcado animal, assim como tu és.” (William Shakespeare, Rei Lear, Ato 3, Cena 4)

Ainda trajado de ministro da suprema corte, o exótico personagem Alexandre de Moraes segue em sua saga de reinventar a Justiça brasileira à imagem e semelhança de seu arbítrio. Já não lhe bastando controlar redes sociais, intimidar jornalistas, silenciar parlamentares e enquadrar humoristas, passou a pretender, como um absolutista ilustrado de toga, ampliar sua jurisdição para além das fronteiras do território nacional. Acontece que, dessa vez, o sujeito mexeu com quem não devia – a Justiça americana.

Atendendo a pedido das plataformas Rumble e Trump Media, em caso já analisado por mim nesta coluna, a Justiça do Distrito Médio da Flórida expediu na última terça-feira, dia 17, uma nova citação contra o juristocrata brasileiro. O tribunal americano exige que ele se manifeste em até 21 dias – sob pena de o processo seguir à revelia, com base apenas nas alegações dos autores da ação, que acusam Moraes da prática de censura e violação da Primeira Emenda à Constituição dos EUA.

Como é de seu feitio, até o momento Moraes não deu uma palavra. Mas é mais fácil deixar de responder às convocações do manso Congresso brasileiro do que às da Justiça dos EUA. O Itamaraty, mais uma instituição sequestrada pela juristocracia nacional, tem acusado a Justiça americana de “politização” – como se censurar a liberdade de expressão nos Estados Unidos fosse um direito inalienável de soberania brasileira. Mas o argumento não parece ter chances de prosperar, uma vez que avançado em favor do representante de uma corte que não tem se envergonhado, ela sim, de assumir o seu protagonismo político-partidário (ilegal, nunca é demais lembrar).

Alexandre de Moraes, de senhor da verdade revelada, poderá um dia ter de prestar contas a uma realidade exterior à bolha hermenêutica do Estado Excepcionalíssimo de Direito

Mas o servilismo atabalhoado do Itamaraty revela que o incômodo causado pela citação americana vai além do constrangimento diplomático. Ele atinge o coração do regime informal que se consolidou no Brasil desde que o STF decidiu que a Constituição é, na verdade, um instrumento plástico – uma espécie de massinha de modelar jurídica, manipulável ao gosto político-ideológico do ministro de plantão.

Há bastante tempo, tenho alertado aqui na coluna (ver, por exemplo, este artigo sobre o assunto) para o fato de que não vivemos mais sob um Estado de Direito, mas sob um Estado de Narrativa. No centro desse teatro de operações está Alexandre de Moraes – intérprete principal, autor, diretor e crítico de sua própria atuação. Como explicar, de outro modo, que um só homem tenha o poder de abrir inquérito de ofício, investigar, julgar e punir os réus que ele mesmo escolhe? Como aceitar que ordens de censura sejam emitidas em sigilo, sem contraditório, sem motivação legal, e, pior, com efeitos extraterritoriais?

A nova citação americana é, por isso, um choque de realidade num ambiente de alienação causada por poder irrefreado. Um lembrete de que ainda há lugares onde a Constituição é levada a sério. Onde a liberdade de expressão não é “ameaça à democracia”, mas sua condição. Onde juízes não são legisladores, muito menos inquisidores. Onde, enfim, ao poder estatal não cabe decidir o que se pode dizer, curtir, compartilhar, retuitar ou pensar.

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O lulopetismo, é claro, está em pânico. Não pelo conteúdo da citação em si, mas pelo precedente aberto. Pois, se a moda pega, o STF acabará sendo forçado a abandonar o papel autoatribuído de instância final de caprichos e retomar o de – esconjuro, pé de pato, mangalô três vezes! – um tribunal constitucional. Alexandre de Moraes, de senhor da verdade revelada, poderá um dia ter de prestar contas a uma realidade exterior à bolha hermenêutica do Estado Excepcionalíssimo de Direito.

É justamente isso que torna o embate tão revelador: a colisão entre dois modelos jurídicos. De um lado, o americano, baseado em freios e contrapesos, com a liberdade como valor fundador. De outro, o nosso, cada vez mais uma espécie de monarquia absoluta interpretativa, em que a lei se dobra ao imperativo da vontade dos monarcas togados. Aqui, o ministro diz o que é “discurso de ódio”, o que é “desinformação” e o que é “ameaça ao regime”. Lá, o cidadão é livre para ser idiota, conspiracionista, herege, liberal, conservador, libertário ou mesmo – vejam vocês – um opositor.

É nesse contraste que Alexandre de Moraes revela-se um personagem tragicômico. Em sua ânsia de controlar o debate público, tornou-se alvo de uma das democracias mais sólidas do mundo. Ao tentar calar opositores fora do país, acabou exposto no palco internacional como o censor-mor de um regime que, sem se assumir como tal (ou, talvez, já praticamente se assumindo), realiza todos os traços clássicos do autoritarismo: perseguição, censura, culto à unanimidade e desprezo ao indivíduo.

Em sua ânsia de controlar o debate público, Alexandre de Moraes tornou-se alvo de uma das democracias mais sólidas do mundo

A ironia é que, enquanto Moraes expande sua autoridade para além-mar, ignora solenemente os princípios que deveria defender aqui. Nenhuma cláusula da Constituição brasileira lhe confere o poder de perseguir críticos, calar parlamentares ou interditar debates. Nenhuma norma permite que ele transforme divergência em crime, opinião em “ato antidemocrático”, crítica em “ameaça institucional”. O que lhe dá poder não é a lei, mas o medo que ainda é capaz de infligir. Medo alimentado por uma imprensa sicofanta. Por um Congresso omisso. Por um empresariado acovardado. Por uma classe intelectual que, salva uma ou outra exceção, já vendeu sua consciência em troca de convites para simpósios sobre “democracia e regulação”. É essa cadeia de covardias que sustenta o regime de exceção sob o qual vivemos.

Se bem aproveitada pelos brasileiros ainda ciosos do valor da liberdade (coisa que eu não acredito que aconteça), a citação americana deveria servir para romper esse círculo de terrorismo estatal. Ela deveria ser um lembrete incontornável de que a realidade existe, de que há mundo além da Praça dos Três Poderes, de que a liberdade ainda respira – mesmo que em outro idioma. E que, sim, juízes também podem ser responsabilizados, inclusive internacionalmente, por seus atos, por mais sagrados que sejam seus cargos aos olhos da militância progressista.

Ao tentar exportar sua jurisdição, Alexandre de Moraes importou para si uma exigência elementar da civilização: o respeito às liberdades individuais. Não por acaso, foi essa a primeira cláusula constitucional da república que o cita agora. Uma cláusula que, se respeitada por aqui, já teria poupado o Brasil do vexame de ver um ministro do Supremo na condição de réu moral – e agora também legal – perante o tribunal da liberdade.

No fim, apesar de suas tentativas, os censores não terão silenciado a história – a qual, ao contrário, os terá reduzido à sua pequenez biográfica, com o desprezo reservado aos farsantes que confundem autoridade com infalibilidade. Se o Brasil cala por covardia, a América fala por princípio. E, entre um e outro, Alexandre de Moraes começa a notar que sua toga cobre menos do que deveria, pois a longa mão (boba) da Constituição americana é capaz de levantá-la em público.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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