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“E vi um novo céu e uma nova terra...” (Apocalipse 21,1)
“A fé moderna no progresso é uma forma secularizada da escatologia cristã.” (Karl Löwith, Meaning in History)
Na última terça-feira, encerrando um seminário na vetusta Universidade de Coimbra, Alexandre de Moraes ergueu-se da condição de ser histórico até as alturas do Eterno para profetizar: “O século 19 foi do Parlamento, o século 20 foi do Executivo e, agora, o século 21 é do Judiciário”.
O século mal encerrou o seu primeiro quartel, e o homem já o definiu plenamente. Coisa de profeta. Se estivesse trajando o burel de São Bento em vez da toga da República, talvez ele tivesse sido confundido com um monge medieval em transe profético, tomado pelo furor de visões místicas. No entanto, a vestimenta real indica tratar-se apenas de um burocrata togado com pretensões messiânicas, anunciando, em solo lusitano, a escatologia tripartite criada por Joaquim de Fiore lá pelos idos do século 12.
Sim, senhoras e senhores: o juristocrata brasileiro está convencido de que vive – ou melhor, comanda – a Terceira Idade da História. Se o século 19 foi o tempo do Pater e o 20, o do Filius, o século 21, por sua graciosa revelação, pertence agora ao Spiritus Sanctus: ao Judiciário, encarnado nele próprio, o ministro do Juízo Final, arcanjo de inquéritos perpétuos e operações salvíficas. A história, enfim, chegou ao seu clímax: o tempo da plenitude jurídica – cujo novus dux é Alexandre de Moraes em pessoa.
O juristocrata brasileiro está convencido de que vive – ou melhor, comanda – a Terceira Idade da História
De Moisés a Napoleão, de Savonarola a Lenin, toda Nova Era exige um homem novo. Um líder, não eleito, mas revelado – um timoneiro supremo, escolhido não pela soberania popular, mas pela necessidade histórica. Alexandre assume esse papel com a naturalidade de quem já se imagina parte dos compêndios escolares.
Joaquim de Fiore, monge calabrês e autor de uma complexa hermenêutica da história cristã, dividia o tempo em três grandes eras: a Era do Pai, correspondente ao Antigo Testamento e ao reinado da Lei; a Era do Filho, encarnada no Novo Testamento e no domínio da Igreja institucional; e, por fim, a Era do Espírito Santo, o tempo final, livre da letra e das instituições, em que a humanidade seria guiada diretamente por um influxo divino, por uma justiça sem mediação – o tempo, por assim dizer, da iluminação sem o Parlamento, sem o Executivo, e, com alguma licença, apenas com o STF (cuja palavra se anuncia por intermédio da arcanja Daniela).
A analogia não é caprichosa. Como o velho Joaquim, Moraes também profetiza um tempo novo. Só que, em vez da graça, promete a jurisprudência; em vez do Paráclito, convoca o Supremo; e, em vez de um mundo liberto da hierarquia eclesiástica, propõe-nos uma sociedade redimida das urnas, das leis e do povo (os “213 milhões de tiranos”) – sob a égide purificadora do controle concentrado de constitucionalidade, espécie de Espírito Santo com protocolo de ofício.
A fala de Moraes não é mera retórica para entreter os colegas da metrópole. Há em suas palavras um conteúdo performativo, um gesto, por assim dizer, de magia institucional. Suas palavras implicam um ato de fala ilocutório declarativo, como diria John Searle. Como nos antigos ritos imperiais – e como diria John Autsin, mestre de Searle –, dizer é fazer. Ao proclamar que este século pertence ao Judiciário, o ministro não descreve um estado de coisas: ele o institui. E o consagra, como quem inscreve uma nova era no Livro da História.
Daí seu papel como novus dux: líder não só de um poder, mas de um tempo. Condutor não apenas de instituições, mas da consciência nacional. Daí que, como todo guia carismático, ele não se sinta obrigado a justificar-se diante da lógica – basta-lhe o destino. A voz do Judiciário, afinal, ecoa como a de Deus no Sinai: não se discute, apenas se cumpre.
Claro que toda Era exige também seus hereges. Como em qualquer escatologia, o tempo da redenção é também o tempo da depuração. E eis que Moraes já nos legou um impressionante inventário de ímpios contemporâneos: jornalistas, padres, influenciadores, empresários, deputados e senadores – todos excomungados por atentarem contra a nova ortodoxia democrática. Uma democracia tão excelsa, tão sutil, que não pode ser nomeada a não ser por seus sumos-sacerdotes. A mesma que pune em nome da liberdade e censura para proteger a opinião.
Fiore imaginara um tempo de paz e reconciliação. Mas, assim como para seus seguidores mais radicais, o tempo de Moraes é, ao contrário, um tempo de guerra espiritual. É uma era de cruzadas jurídicas contra a blasfêmia digital, contra os demônios do discurso de ódio e os hereges da desinformação. Sua missão é pastoral e punitiva: pastorear os bons, punir os maus. Tudo, claro, em nome do Espírito da Democracia.
Ao proclamar que este século pertence ao Judiciário, Moraes não descreve um estado de coisas: ele o institui. E o consagra, como quem inscreve uma nova era no Livro da História
Se Hegel tivesse nascido no Brasil, talvez substituísse o Estado Prussiano pela Suprema Corte brasileira como manifestação final da Razão no mundo. Mas o filósofo de Stuttgart seria ainda tímido: para Moraes, o fim da história se realiza em seu próprio gabinete, de onde irradia luz sobre a República em ruínas. Hegel sonhava com o Saber Absoluto. Moraes já o tem: está redigido, rubricado e publicado no Diário Oficial.
Como convém a todo grande líder da Nova Era, Moraes já não distingue entre o que é, o que deve ser e o que será. Como dizia o grande Eric Voegelin, o gnosticismo moderno caracteriza-se justamente pela tentativa de “imanentizar o eschaton” – ou seja, antecipar na história um fim que deveria pertencer à ordem transcendente. Nosso juristocrata, com o entusiasmo dos convertidos e a autoconfiança dos censores, não apenas tenta: ele já o fez.
No fundo, Moraes não nos oferece um programa institucional, mas um novo dogma temporal. Não se trata mais de interpretar ou aplicar a Constituição, mas de encarná-la. Ele é seu verbo feito carne. O código se fez homem, habitou entre nós – e nos julga de ofício.
Hegel sonhava com o Saber Absoluto. Moraes já o tem: está redigido, rubricado e publicado no Diário Oficial
Vivemos, portanto, não apenas uma mutação do regime, mas uma mutação da história. Não há mais política – há escatologia jurídica. Não há mais magistratura – há condução espiritual. Não há mais tempo histórico – há revelação. Alexandre de Moraes é, assim, o primeiro ministro pós-histórico do Brasil. Não governa no tempo, mas sobre ele.
Talvez algum historiador do futuro, exilado em país de fala compreensível, venha a escrever:
“No início do século 21, com o colapso do sistema político e a anestesia cívica da população, o Brasil ingressou em sua Terceira Era, liderada por um novo tipo de autoridade: o novus dux togatus, ao mesmo tempo juiz e redentor. Seu nome? Moraes, Alexandre de.”
E quem quiser discordar, que o faça sob pena de censura, bloqueio e excomunhão civil.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




