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Índios Yanomami aguardam atendimento médico em foto de junho de 2020.
Índios Yanomami aguardam atendimento médico em foto de junho de 2020.| Foto: Joedson Alves/EFE

“O senso comum continua vendo na prática do canibalismo uma monstruosidade, uma aberração tão inconcebível da natureza humana que certos autores, vítimas do mesmo preconceito, chegam a negar que o canibalismo tenha alguma vez existido.” (Claude Lévi-Strauss, Somos Todos Canibais)

A sujeira da presente corrida eleitoral ficou particularmente mais encardida essa semana, quando a campanha do candidato ex-presidiário – que tem ninguém menos que o inclassificável André Janones no comando das redes sociais – resgatou um vídeo de uma entrevista de 2016 concedida pelo então deputado Jair Bolsonaro ao jornal americano The New York Times. Em determinado trecho, devidamente recortado pela equipe lulopetista de infowar, Bolsonaro comentava sobre uma viagem à região de Surucucu, no norte amazônico, quando teve a oportunidade de visitar uma aldeia Yanomami. Suas palavras à época foram:

“Morreu o índio e eles estão cozinhando, eles cozinham o índio, é a cultura deles. Cozinha por dois três dias, e come com banana. Daí eu queria ver o índio sendo cozinhado, e um cara falou, ‘se for ver, tem de comer’, daí eu disse, eu como! E ninguém quis ir, porque tinha de comer o índio, então eles não me queriam levar sozinho, e não fui (...) Eu comeria sem problema nenhum. É a cultura deles. Eu me submeti a isso.

Antropólogos resolveram emprestar sua autoridade acadêmica (ah, a ciência, ciência, ciência!) para negar peremptoriamente a existência de canibalismo entre os Yanomami e fulminar Bolsonaro como mentiroso. Mas os mentirosos são eles

Devotos da moralidade relativista típica dos revolucionários – para os quais nenhum método é vil o bastante se favorável ao seu projeto de poder –, os integrantes da quadri... digo, da campanha do ex-presidiário utilizaram o recorte para retratar Bolsonaro como canibal. “Ele, se puder, come índio” – disse em palanque o candidato preferido nos presídios. Até aí, nada fora do script. Não se poderia esperar coisa diferente de quem sempre tomou a mentira por virtude política.

O que realmente me chamou a atenção foi o comportamento de colegas antropólogos diante do caso. Convidados pela imprensa a comentar a fala do presidente, resolveram emprestar sua autoridade acadêmica (ah, a ciência, ciência, ciência!) para negar peremptoriamente a existência de canibalismo entre os Yanomami e fulminar Bolsonaro como mentiroso, preconceituoso, racista e demais estigmas característicos da linguagem política antibolsonarista. Ao autoproclamado “consórcio” de imprensa – uma legião indistinguível de veículos que, em ordem unida, pensam e dizem sempre as mesmas coisas –, o antropólogo Rogério Pateo, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), declarou:

“O que ele fala é um delírio. É uma coisa absurda num nível. Típica de quem vive nessa bolha de preconceito contra os indígenas (...) Ele tem na cabeça aquela imagem que assustou a Europa 500 anos atrás. É preconceito e racismo. Atualmente, não há resquício dessa imagem de canibalismo entre indígenas brasileiros.”

Entrevistada pela agência de checagem Pública, a professora Alcida Rita Ramos, decana da antropologia brasileira e grande conhecedora dos Yanomami, foi na mesma linha, reputando como falsa e ultrajante a sugestão de que o canibalismo fizesse parte da cultura indígena. Para sustentar o argumento, chegou a propor um paralelo com a eucaristia católica:

“Todas as semanas milhares e milhares de fiéis católicos ingerem grandes quantidades de hóstias, bolachas de pão sacralizadas para representar o corpo de Jesus Cristo. É um ritual de incorporação de quem está morto, não importa há quanto tempo. Quem ousaria chamar essa prática de canibalismo? Em que ela difere do rito funerário Yanomami?”

Deixando de lado, por ora, a sofrível comparação com a eucaristia (uma vulgaridade intelectual sobre a qual recomendo esse esclarecimento do padre Paulo Ricardo), detenho-me na questão levantada. Porque, se é verdade que ninguém (a não ser talvez, justamente, um antropólogo) chamaria de canibalismo a comunhão católica, o mesmo não se dá com a prática indígena, que é assim chamada por dez entre dez antropólogos. Desde que ingressei na antropologia, especializando-me justamente em etnologia indígena, subcampo inaugurado, entre outros, pela professora Alcida, aprendi que o rito funerário Yanomami (o Rehahu) é um caso emblemático de endocanibalismo (um tipo de canibalismo funerário caracterizado pela ingestão homeopática de partes do corpo de parentes falecidos), que o cânon antropológico costuma opor ao exocanibalismo – o canibalismo guerreiro praticado, entre outros, pelos Tupinambá quinhentistas, celebremente descrito por viajantes como Hans Staden, e caracterizado pela ingestão voraz de partes do corpo de inimigos.

Desde que ingressei na antropologia, especializando-me justamente em etnologia indígena, aprendi que o rito funerário Yanomami é um caso emblemático de endocanibalismo

A resposta à pergunta sobre quem ousaria chamar de canibalismo o rito funerário Yanomami é, portanto, uma só: a antropologia, que assim sempre o fez. A professora Alcida Ramos sabe disso melhor do que eu. E eu sei que ela sabe. Sei, por exemplo, que ela conhece bem o trabalho do antropólogo francês Bruce Albert, um dos maiores estudiosos da cosmologia Yanomami, e cuja tese de doutorado, defendida em 1985 com o título Temps du sang, temps des cendres: representation de la maladie, systeme rituel et espace politique chez les Yanomami du Sud-est, virou referência dentro da etnologia indígena sul-americana, tendo justamente o canibalismo por tema central. Na tese, Albert descreve a coexistência, na sociedade Yanomami, de um exocanibalismo guerreiro figurado (unokai), em que o homicida ingere simbolicamente o sangue de sua vítima, e um endocanibalismo mortuário literal (rehahu), no qual as cinzas dos mortos são consumidas com mingau de banana. O capítulo 11 da tese (“Le sang des ennemis: figures d’un exo-cannibalisme guerrier”) é dedicado à descrição pormenorizada do primeiro tipo. O capítulo 12 (“Les ossements des alliés: figures d’un endo-cannibalisme funéraire”), à descrição do segundo.

Com efeito, na imaginação Yanomami, como na de boa parte das sociedades indígenas sul-americanas, a guerra e a caça costumam ser simbolicamente equiparadas ao canibalismo. Como mostra a antropóloga Aparecida Vilaça – etnógrafa dos índios Wari’ (ou Paaka Nova) de Rondônia, grupo indígena que, num passado não muito remoto, praticava tanto o exocanibalismo (guerreiro) quanto o endocanibalismo (funerário) –, é comum nas sociedades indígenas sul-americanas a concepção de que ninguém morre “naturalmente”, por assim dizer, já que toda morte de um membro do grupo é atribuída a uma ação de canibalismo à distância (ou feitiçaria guerreira) por parte de outro grupo. Eis por que, inclusive, a dicotomia exo-/endo- tenha sido frequentemente problematizada nesse contexto etnográfico.

Tão recorrente é a figura do canibalismo na mitologia e na imaginação dos índios sul-americanos – mesmo entre aqueles que jamais o praticaram literalmente, ou que apenas o fizeram no passado – que o mestre francês Claude Lévi-Strauss, tendo dedicado boa parte da sua vida ao estudo desses povos, chegou a caracterizar o seu pensamento como uma “metafísica da predação”. Com efeito, na mitologia e na sociologia dessas sociedades, quase toda relação com o outro – quer seja um estrangeiro, um animal (presa ou predador) ou um espírito – tende a ser concebida como uma relação entre presa (animal) e predador (gente). Daí que, como sugere o badalado etnólogo Eduardo Viveiros de Castro, o canibalismo apareça como “um motivo onipresente na imaginação relacional dos habitantes destes mundos”.

Em depoimento à revista SuperInteressante, em edição que pretendia desfazer os tabus e preconceitos relativos ao tema do canibalismo, o mesmo Viveiros de Castro (de quem, a propósito, fui orientando no mestrado e no doutorado) explicara o endocanibalismo funerário Yanomami como um modo de organizar “um estado de hostilidade permanente”, advindo da concepção acima mencionada. E, tal como sua colega Alcida Ramos, elevara-o ao mesmo patamar de dignidade do rito católico: “A cerimônia é quase uma eucaristia”. No corpo da matéria, por sua vez, o repórter escrevia o seguinte:

“O canibalismo, ritual milenar dos índios brasileiros, já foi uma cerimônia sangrenta, que misturava bravura, ódio e até respeito pelo inimigo. Hoje, sobrevive em cerimônias misteriosas e ultraelaboradas em que são comidos os restos dos mortos queridos (...) Se as cerimônias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos Yanomami é capaz de chocar o senso comum dos brancos pelo que tem de inesperado. Para um Yanomami, comer as cinzas do amigo morto é uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante desse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele não é um gesto de ódio, mas de amor.”

Percebe-se que, para a antropologia, a instituição do canibalismo entre os Yanomami e outros povos indígenas não apenas sempre existiu – quer de maneira literal, quer de maneira simbólica – como é digna de todo o respeito, tanto quanto (ou até mais que) a eucaristia católica. Em condições normais de temperatura e pressão, jamais teria passado pela cabeça de um antropólogo, muito menos pela de um etnólogo especializado em sociedades indígenas, que a afirmação da prática de canibalismo pudesse ser culturalmente depreciativa ou socialmente indigna. Antes pelo contrário, há em certos meios intelectualoides, inclusive, quem a considere até um tanto quanto cool.

Os antropólogos têm direito de não gostar de Bolsonaro e se engajar na campanha para eleger o seu adversário. O que não deveriam fazer em nome desse engajamento é negar aquilo que sabem ser uma verdade óbvia

Estranho, portanto, o escândalo afetado por alguns de meus colegas diante da fala de Jair Bolsonaro. Afinal, posto que de maneira imprecisa quanto aos detalhes do ritual e rudimentar na forma de expressão, o que o então deputado demonstrou ali foi justamente respeito por essa instituição cultural. Tanto que, em lugar de se afastar horrorizado diante de uma pretensa “selvageria”, dispôs-se ao gesto cortês de tomar parte na cerimônia, algo que, se feito por um antropólogo, seria tido por sinal de virtude pessoal e engajamento profissional. Aliás, excetuando diferenças de estilo e refinamento vocabular, afirmar que o canibalismo “é um motivo onipresente na imaginação relacional dos habitantes destes mundos” não é fundamentalmente distinto de dizer que “é a cultura deles”.

É escusado dizer que, como quaisquer cidadãos, os antropólogos têm direito de não gostar de Bolsonaro e se engajar na campanha para eleger o seu adversário. O que não deveriam fazer em nome desse engajamento é negar aquilo que sabem ser uma verdade óbvia (a ponto de, inclusive, já ter sido objeto de matéria no Globo Repórter). Não está sendo intelectualmente honesto um etnólogo que nega a instituição do canibalismo (do endocanibalismo funerário) entre os Yanomami. Muito menos quem qualifica de “delirante” a sugestão de sua existência, caso em que teria de descrever como igualmente delirante a etnografia de Bruce Albert, obra que, repito, consagrou-se como um clássico da área. E menos ainda quem, partindo dessa primeira desonestidade, atribui casuisticamente a algum preconceito atávico do presidente da República aquilo que, nos círculos da intelligentsia antropológica, e em outras circunstâncias, seria usualmente tido por uma salutar “abertura ao outro”. Ao fim e ao cabo, é irônico constatar que justo o “preconceituoso” Bolsonaro tenha demonstrado menos repugnância diante do canibalismo em si do que alguns antropólogos diante da mera afirmação de sua existência.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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