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O ministro do STF Luís Roberto Barroso
O ministro do STF Luís Roberto Barroso.| Foto: Carlos Alves Moura/STF

“Quando faço uma palavra trabalhar tanto assim, sempre lhe pago um adicional.” (Humpty Dumpty)

“Quando uso uma palavra, ela significa o que eu quiser que ela signifique... Nem mais nem menos”, diz Humpty Dumpty em Alice Através do Espelho, o clássico de Lewis Carroll. Espantada, a menina indaga: “A questão é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”. Responde-lhe então o cabeça de ovo: “A questão é quem manda. E eis tudo”.

Eis tudo, por exemplo, o que se precisa saber sobre a presença de ministros do STF e do TSE na Lide Brazil Conference, em Nova York, para palestrar no painel intitulado “Brasil e o respeito à liberdade e à democracia”. A macabra ironia do título, por óbvio, remete-nos a outros casos emblemáticos do cinismo intrínseco ao vocabulário político totalitário, como a presença da palavra “democrática” no nome oficial da Alemanha Oriental (República Democrática Alemã) ou o terrível lema “O trabalho liberta” (Arbeit macht frei), celebremente exibido no portão de entrada nos campos de concentração nazistas. E remete também àquilo que, em relação aos regimes comunistas, escreve Theodore Dalrymple: “Dentro de um regime totalitário estabelecido, o propósito da propaganda não é persuadir, e muito menos informar, mas sim humilhar. Desse ponto de vista, a propaganda não deveria aproximar-se da verdade o máximo possível; pelo contrário, ela deveria violentá-la tanto quanto pudesse. Afinal, ao afirmar incessantemente aquilo que é evidentemente falso, ao tornar essa inverdade onipresente e inevitável, e, enfim, ao insistir que todos aquiesçam publicamente a ela, o regime demonstra seu poder e reduz os indivíduos a nulidades”.

Referindo-se particularmente à ditadura de Nicolae Ceaușescu, na Romênia, Dalrymple menciona a perversa desfaçatez do regime em autoproclamar-se parteiro de uma “era da luz” no instante mesmo em que, graças ao colapso econômico, a luz era racionada no país. É a mesma desfaçatez observada em magistrados brasileiros que, enquanto destroem em casa os alicerces básicos de uma democracia (a liberdade de expressão, o devido processo legal e a separação de poderes), exibem no exterior uma pose canastrona de democratas-modelo. Não espanta que, a tal desfaçatez, tenham também acrescido pitadas de escárnio para com o público que os confrontava, farto de ser humilhado por uma já duradoura imposição de mentiras oficiais. É que Humpty Dumpty, o malandro, acha que manda no povo, o mané. Daí a certeza de poder atribuir a palavras como “democracia” e “liberdade” o sentido que bem entenda, mesmo se frontalmente oposto ao habitual.

Humpty Dumpty, o malandro, acha que manda no povo, o mané

Por óbvio, um filólogo humpty-dumptyano terá tanto mais facilidade em impor os seus próprios sentidos às palavras quanto mais esvaziadas de sentido elas se tornem no linguajar ordinário de uma sociedade. Assim é, justamente, com palavras frequentemente tão banalizadas como “democracia” e “liberdade”, cujo sentido fundamental se perde em meio à sua psitacídea repetição no debate público. Eis por que, em ambientes totalitários, palavras e expressões semanticamente positivas aos ouvidos da comunidade de falantes são frequentemente usurpadas pelos donos do poder, que por meio delas buscam conferir legitimidade a toda sorte de arbítrio e violência política. Ilustrativa nesse sentido é a análise que o filósofo Eric Voegelin faz do conceito alemão de Rechtsstaat (“Estado de Direito”) no contexto nacional-socialista.

Em Hitler e os Alemães, no capítulo intitulado “Descida ao abismo legal” (que trata especificamente da corrupção nacional-socialista do direito alemão), Voegelin mostra como o Rechtsstaat se havia transformado em tópos, um lugar-comum recorrente no linguajar da sociedade alemã pré-nazista, e como esse esvaziamento de sentido permitiu aos nazistas fazerem passar por expressão do direito (e, pois, da justiça) as mais patentes violações do direito, dotando os mais bárbaros crimes contra a humanidade com uma aparência de legalidade. “Com palavras como Rechtsstaat, estamos boiando na segunda realidade da diversão das palavras, em que se fala em círculos sem se saber exatamente o significado”, diz o filósofo.

Com efeito, um lugar-comum frequentemente repetido na Alemanha nazista era o de que “ordens judiciais devem ser respeitadas”. Que as ordens fossem moralmente abjetas parecia não importar a uma cultura enfeitiçada pelo hocus pocus do Rechtsstaat. Ex-aluno de Kelsen, Voegelin tornou-se um crítico implacável do positivismo jurídico, vendo nele um perigoso formalismo que, desconsiderando o problema político de quem faz e maneja as leis, termina por impossibilitar a crítica externa (moral, religiosa, filosófica etc.) ao arcabouço legal. Esse perigo revela-se de maneira mais dramática, por óbvio, quando o Estado é tomado por criminosos como os nazistas. Nas palavras do autor:

“O fato de que essas proposições [legais], que se aprendem tão bem e se tem de seguir, também tenham de ser decretadas por alguém é um problema que não está no horizonte do mundo legal das ideias na Alemanha. Aqui está o problema político. Pois se eles concordaram uma vez, emocional e psicologicamente, em viver num Rechtsstaat e são obrigados como cidadãos obedientes do Rechtsstaat a fazer o que as leis mandam, e se a questão acerca de quem faz a lei é eliminada, então de novo tendes a situação de desmoralização ao modo da ralé, que não se interessa pelas perguntas: onde encontramos ordem? Quais são os conteúdos da lei e o que eles ordenam? Onde estão os critérios de justiça? Quão longe se pode permitir o cálculo do erro? Então, contra a situação positivista do jurista que aplica a lei de cuja criação ele mesmo não participou, e se submete incondicionalmente às autoridades que a criam e promulgam, é psicologicamente impossível rebelar-se se o conteúdo da lei positiva, ou seja, das leis, é criminoso.”

Essa impossibilidade psicológica é o que, em situações de corrupção moral generalizada como a que acometeu a Alemanha nacional-socialista, tende a levar pessoas até então decentes a tomar parte em empreendimentos monstruosos, sob a desculpa de estarem cumprindo ordens ou, simplesmente, seguindo as leis. “Então, o que interessa é a condição moral da sociedade e não essa construção legal, que realmente só faz sentido sob a condição de que a sociedade esteja intacta e simplesmente não a jogue na lata de lixo no dia seguinte” – observa Voegelin. “Em termos de Direito, portanto, não se pode fazer absolutamente nada. O tópos do Rechtsstaat esconde o problema real: está a sociedade moralmente intacta e comportar-se-á de acordo com essas regras legais ou não? (...) Um Rechtsstaat funciona apenas dentro de uma sociedade razoavelmente sã. Quando a sociedade não é sã, o Rechtsstaat deixa de existir”.

Quando, portanto, um tópos como “Estado de Direito” vira arma de guerra política nas mãos de quem teria justamente a missão de garanti-lo, é um sinal claro de que a sociedade não está sã. Numa tal sociedade, em que a vacuidade vocabular é a porta de entrada para a tirania, a esfera do direito como um todo precisa ser submetida a uma crítica extrajurídica. A simples repetição irrefletida dos lugares-comuns cujo sentido foi inteiramente subvertido (quando não simplesmente invertido) pelos tiranos só fará essa sociedade afundar-se mais e mais no abismo de uma ordem infame travestida de normalidade jurídica e institucional. Como conclui Voegelin, “se os homens são corruptos e incapazes de lei e justiça, ou se eles professam algum tipo de ideologia sob justiça, então é claro, não se tem nenhuma ordem legal ”. O que se tem, em vez disso, é uma ditadura aviltante que recusa revelar o nome, e que, num volteio classicamente distópico, chega mesmo a dizer-se democracia. Afinal, segundo o cabeça de ovo, “a questão é quem manda”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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