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Flávio Gordon

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Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

STF

Stalinismo de toga: o caso Carla Zambelli

Carla Zambelli
Moraes abriu inquérito contra Zambelli por suposta obstrução de justiça e pediu dados de apoiadores que fizeram doações via Pix para a deputada. (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

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“Para cada família marcada para repressão será realizada uma verificação minuciosa, coletando dados adicionais e materiais comprometedores (...) Com base nesses materiais, deverão ser elaborados: relatório detalhado sobre a família indicando: nome completo do chefe de família condenado, quais crimes cometeu, quando, por quem e qual a pena; lista nominal da família (incluindo dependentes e pessoas que moravam junto); dados detalhados de cada membro da família; materiais comprometendo a esposa do condenado; avaliação do grau de periculosidade social das crianças maiores de 15 anos; informações sobre pais idosos ou dependentes, doentes graves ou infectocontagiosos, crianças que necessitam de cuidados especiais (...) Os relatórios são analisados pelos Comissários do Povo para Assuntos Internos das repúblicas e chefes dos departamentos da NKVD das regiões. Estes: a) autorizam as prisões e buscas das esposas dos traidores da pátria; b) definem medidas para as crianças das presas; c) indicam ações a serem tomadas em relação aos pais e outros parentes dependentes e conviventes do condenado.” (Ordem Operacional n.º 00486 do Comissário do Povo Para Assuntos Internos da URSS, 15 de agosto de 1937, Moscou)

Por mais que se vista com os galões da autoridade jurídica, e receba a adulação da imprensa sicofanta, a perseguição política continua sendo perseguição política. No Brasil de 2025, ela voltou a ostentar sua forma mais abjeta: aquela que ultrapassa o indivíduo e alcança sua família, seus amigos, seus doadores – quem quer que ouse, mesmo de longe, ser solidário. O nome disso todos conhecemos: terror de Estado. Embora ele troque de roupa, de linguagem e de pretexto ao longo dos anos, sua natureza permanece inalterada.

A mais recente vítima da escalada autoritária orquestrada pelo Supremo Tribunal Federal, em aliança com o partido governante, atende pelo nome de Carla Zambelli, deputada federal eleita por São Paulo com mais de 900 mil votos, alvo de uma sequência de decisões judiciais que não faria inveja aos totalitarismos do passado. Após ser condenada a mais de dez anos de prisão por suspeita de invasão a sistemas do CNJ – sem que se tenha, até aqui, demonstrado dolo ou dano efetivo, e sem que se tenha apresentado uma prova além do depoimento do tal hacker –, a parlamentar viu-se submetida a uma série de medidas de exceção que não se aplicam nem aos piores homicidas do país.

Para Alexandre de Moraes, não basta punir Carla Zambelli – é preciso intimidar a comunidade que ousa cercá-la de apoio. A palavra-chave é isolamento. O método: o terror jurídico

Contas bancárias congeladas. Redes sociais bloqueadas. Direitos políticos cassados antes mesmo do trânsito em julgado. Até aqui, o habitual no novo regime de “democracia relativa”. Mas Alexandre de Moraes foi além: bloqueou também as redes sociais da mãe de Carla Zambelli e de seu filho menor de idade, ultrapassando, com desenvoltura, o princípio da intranscendência da pena – cláusula pétrea da Constituição que veda a punição de inocentes por atos alheios.

Não satisfeito, determinou que o Banco Central revelasse os nomes, CPFs e valores de todos os cidadãos que, via Pix, fizeram doações voluntárias à deputada. Um gesto que diz tudo: não basta punir a herege – é preciso intimidar a comunidade que ousa cercá-la de apoio. A palavra-chave é isolamento. O método: o terror jurídico. O pretexto, repetido em novilíngua castiça: proteger o Estado de Direito.

Nada disso é novo. Na União Soviética de Josef Stálin, a prática era semelhante, embora mais rudimentar: quando um político ou intelectual caía em desgraça com o regime, os primeiros a sofrer as consequências eram seus familiares. Não raro, mulheres e filhos de acusados por “atividades contrarrevolucionárias” eram enviados ao gulag. Em Vida e Destino, Vasily Grossman relata, por exemplo, o caso de Anna Larina, esposa de Nikolai Bukharin (um dos bolcheviques fundadores), presa após a execução do marido e exilada por quase 20 anos. Ou, ainda, o caso dos filhos de Trotsky, perseguidos e mortos, ou levados à prisão, mesmo após o exílio e posterior assassinato do pai. A lógica era simples: tornar o custo da dissidência pessoalmente insuportável. Não apenas para o rebelde, mas para quem com ele partilhasse laços de sangue ou afeto.

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Essa lógica reaparece, requintada em linguagem jurídico-tecnocrática, nas decisões recentes do STF. Sob a desculpa de “evitar a continuidade delitiva”, pune-se preventivamente não o infrator, mas o círculo familiar e social do réu, num espetáculo que, ao mesmo tempo em que amedronta, lança o sinal: ninguém está seguro.

Em qualquer democracia minimamente funcional, as ações do ministro Moraes provocariam escândalo institucional. No Brasil, são tratadas com reverência. Afinal, vivemos sob um modelo em que o STF se converteu em legislador informal, em censor oficial e agora, cada vez mais, em delegado inquisidor, com direito a quebrar sigilos, punir preventivamente e reinterpretar a Constituição conforme seus propósitos políticos de ocasião – e tudo isso sem qualquer tipo de freio ou controle externo.

O exílio de Carla Zambelli, portanto, não é um acidente. É parte do script. Antes dela, como se sabe, Eduardo Bolsonaro – que, assim como Carla, é um dos parlamentares mais votados da história – sofreu assédio judicial similar e teve de se exilar nos EUA. Outros parlamentares de direita foram cassados e presos. Jornalistas foram silenciados, empresários tiveram bens bloqueados, influenciadores viram suas contas apagadas. O objetivo não é apenas punir indivíduos, mas construir um exemplo – uma pedagogia do medo.

Um Estado que persegue filhos e mães para atingir congressistas da oposição, e que criminaliza doações privadas, se aproxima perigosamente do modelo de justiça de exceção

Não é preciso gostar de Carla Zambelli. Não é preciso endossar suas ações, discursos ou alinhamentos políticos. O que está em jogo aqui não é o mérito da parlamentar, mas os métodos do Estado. Um Estado que persegue filhos e mães para atingir congressistas da oposição; que criminaliza doações privadas; que restringe direitos políticos por decisão monocrática. Um Estado que se aproxima perigosamente do modelo de justiça de exceção.

O que há de mais grave, contudo, é o silêncio – ou, pior ainda, o aplauso. Boa parte da imprensa, outrora guardiã das liberdades civis, transformou-se em corifeu do autoritarismo judicial. Os mesmos que outrora denunciavam com horror qualquer pretensa ameaça à liberdade de expressão hoje celebram prisões, censuras e perseguições, desde que dirigidas ao adversário político.

E assim, a democracia vai sendo substituída por um regime em que o dissenso se torna crime, o apoio vira suspeita e a neutralidade, omissão imperdoável. Um regime em que a Constituição é tratada como obstáculo moral e o devido processo legal, como detalhe secundário. Um regime que persegue, isola e exila. O nome disso não é justiça. É revanche. E seu nome histórico, embora hoje use toga, continua sendo o mesmo: tirania.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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