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Em defesa da vida, 40 deputados do Paraná repudiam ação que pretende liberar o aborto
Em 2012, bioeticistas italianos defenderam o “aborto pós-nascimento”, e ainda foram defendidos por seus pares.| Foto: Unsplash

“Binding and Hoche turned out to be the prophets of direct medical killing.” (Robert Jay Lifton, The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide)

Em fevereiro de 2012, foi publicado no Journal of Medical Ethics um artigo polêmico, no qual os autores, os pesquisadores Francesca Minerva e Alberto Giubilini, defendiam o direito ao infanticídio – por eles chamado de “aborto pós-nascimento”. Como não poderia deixar de ser, o artigo foi objeto de muitas críticas, dentre elas um excelente editorial desta Gazeta do Povo.

Intitulado After-birth abortion: why should the baby live? (“Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver?”), o texto tem por argumento central a afirmação de que um bebê recém-nascido não é fundamentalmente diferente de um bebê ainda não nascido, de modo que, se a sociedade aceita que se possa matar uma pessoa em situação intrauterina, por que recusa que se possa fazer o mesmo com uma pessoa recém-saída do útero? Afinal, haveria algo de miraculoso na passagem do interior ao exterior do útero capaz de transformar em pessoa humana (e, portanto, titular do direito à vida) aquilo que, segundos antes, não passava de uma coisa (um amontoado de células, uma parte do corpo da mulher etc.)?

Embora a proposta do artigo seja ofensiva para muitos, é preciso admitir que a premissa que a sustenta é correta. Assim como os pró-vida, os autores equiparam aborto e infanticídio, mas, ao contrário dos primeiros, eles o fazem para endossar ambas as práticas. Os autores estão sendo coerentes. Como são coerentes os que, por serem contrários ao aborto (o infanticídio intrauterino), permanecem obviamente contrários ao “aborto pós-nascimento” (o infanticídio extrauterino). O que não é coerente é escandalizar-se com o infanticídio, mas, ao mesmo tempo, defender o aborto. Afinal, as justificativas apresentadas por Minerva e Giubilini para defender o infanticídio são muito similares aos argumentos dos abortistas, prenhes de utilitarismo: “Deixar crescer essa criança pode significar um fardo insustentável para a família e a sociedade como um todo, na medida em que o Estado provê os seus cuidados”.

As justificativas apresentadas por Minerva e Giubilini para defender o infanticídio são muito similares aos argumentos dos abortistas

Note-se que o mesmo utilitarismo estava presente na obra Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida, publicada em 1920 por Karl Binding e Alfred Hoche, e por mim comentada no artigo da semana passada. Desse tipo de argumento que se pretende humanista e compassivo, e cujo foco está num suposto direito individual dos envolvidos, passa-se muito facilmente à defesa da razão de Estado em discriminar entre as vidas dignas e as indignas de serem vividas. Foi o que fizeram Binding e Hoche, ao destacarem o custo econômico e social da manutenção da vida dos física e mentalmente incapazes, pelo qual forneceram o argumento central para o programa nazista de eutanásia compulsória. Como escreveu Hoche em seu ensaio:

“Do ponto de vista de uma alta moralidade, não há dúvida quanto aos exageros empenhados na preservação absoluta da vida indigna de ser vivida. Aprendemos, a partir de uma outra perspectiva, a considerar o organismo estatal como um todo segundo suas próprias leis e direitos, tanto quanto, por exemplo, um organismo humano, que, como nós médicos bem o sabemos, expurga e rejeita partes e partículas inúteis ou adoentadas, no interesse do bem-estar do todo.”

Muito embora Minerva e Giubilini não tenham dado o passo de conceder ao Estado a decisão sobre a vida e a morte, houve quem não se vexasse a isso. Foi o caso, por exemplo, do bioeticista Jacob Appel. No artigo Neonatal euthanasia: Why require parental consent? (“Eutanásia neonatal: por que exigir o consentimento dos pais?”), publicado no Journal of Bioethical Inquiry, o autor argumenta que somente doutores e burocratas têm a objetividade necessária para fazer a coisa certa, e pôr um fim às vidas indignas de serem vividas. Segundo ele, a eutanásia neonatal é a “consequência inevitável do nosso progresso rumo ao humanismo liberal”.

Quando da publicação do polêmico artigo de Minerva e Giubilini, o editor-chefe do Journal of Medical Ethics, o eugenista contemporâneo Julian Savulescu, saiu em defesa dos autores:

“Como editor do jornal, eu gostaria de defender a sua publicação. O argumento apresentado, de fato, não é novo, e foi repetidamente sustentado na literatura acadêmica e nos fóruns de debates pelos mais eminentes filósofos e bioeticistas, incluindo Peter Singer, Michael Tooley e John Harris em sua defesa do infanticídio, que os autores chamam de aborto pós-nascimento (...) De modo provocativo, os autores argumentam não haver diferença moral entre um feto e um recém-nascido. Suas capacidades são relativamente similares. Logo, se o aborto é permitido, o infanticídio deve ser permitido. Os autores partem logicamente de uma premissa aceita por muitos para uma conclusão por muitos rejeitada (...) O perturbador não é o argumento do artigo ou o fato de sua publicação num jornal de ética. Perturbadora é a resposta hostil, abusiva e ameaçadora que suscitou. Mais do que nunca, uma discussão livre e propriamente acadêmica está sob ataque de fanáticos opostos aos valores mesmos de uma sociedade liberal.”

Savulescu tem razão. O argumento dos autores não é novo. Vários acadêmicos já o defenderam, entre eles os citados Singer, Tooley e Harris. Mas também – por que não os incluir na lista? – Karl Binding e Alfred Hoche. Afinal, estamos falando de acadêmicos travando uma “discussão livre e propriamente acadêmica”. Eles não são apologistas apaixonados ou ideólogos radicais. São cientistas. E, em se tratando de ciência, ciência, ciência, tudo o que fazem é extrair conclusões das premissas corretas, certo?

Nem tanto. É preciso não esquecer que, assim como o comunismo, o nazismo se pretendeu “científico”. O nazista Rudolf Hess, braço-direito de Hitler, chegava a dizer celebremente que o nazismo era apenas “biologia darwinista aplicada”. É claro que, para burlar esse delicado problema, pode-se sempre adotar o expediente fácil de acusar os nazistas de estarem praticando “pseudociência”. Mas, como mostra Richard Weikart em From Darwin to Hitler: Evolutionary, Ethics, Eugenics and Racism in Germany, os nazistas não tiraram a ideia de extermínio “científico” ex nihilo, baseando-se, ao contrário, nas ideias dos mais eminentes eugenistas e darwinistas alemães, a começar por Ernst Haeckel. Obviamente, ninguém ali se considerava pseudocientífico, assim como os cientistas e cientificistas de hoje não se o consideram, muito embora nenhum deles possa ter certeza de que, mais dia menos dia, a sua ciência não venha também a ter o desprazer de receber o prefixo pseudo-.

Afirmar que certas considerações éticas decorrem necessariamente (e consensualmente) de um dado conjunto de fatos científicos é algo extremamente perigoso

O problema, portanto, está menos em averiguar o acerto ou o erro de tal ou qual prática científica, e mais na própria premissa compartilhada por cientificistas de ontem e de hoje. Tanto quanto Rudolf Hess e os nazistas, por exemplo, Savulescu e seus pares ideológicos parecem concordar com a ilusão positivista de que res ipsa loquitur, “a coisa fala por si”, e de que, se sabemos algo sobre a biologia, devemos agir com base nesse saber, extraindo-lhe conclusões pretensamente lógicas e necessárias, inclusive nas esferas social, política e moral. Resta que essa ideia, segundo a qual certas conclusões decorrem de modo autoevidente de verdades científicas, esteve por trás do movimento eugenista de inícios do século 20, bem como do socialismo “científico” dos comunistas e do biologismo “científico” dos nazistas. A despeito da mudança nos conteúdos científicos tidos por verdadeiros ou falsos, a premissa permanece intacta nos meios intelectuais e políticos contemporâneos, tendo se manifestado de modo particularmente radical a partir da pandemia de coronavírus, durante a qual toda discordância em relação a políticas públicas e escolhas morais passou a ser vista como uma perigosa negação da ciência. Não se pode extrair uma norma de um fato, um “deve ser” de um “é”. Afirmar que certas considerações éticas decorrem necessariamente (e consensualmente) de um dado conjunto de fatos científicos é algo extremamente perigoso.

Por fim, gostaria de ressaltar que Karl Binding e Alfred Hoche não eram nazistas, e não tiveram relações com o partido nacional-socialista. Binding morreu em 1920, ano da publicação de sua influente obra, e, portanto, muito antes da ascensão dos nazistas ao poder. Hoche era casado com uma judia, e teve um parente vitimado pela máquina nazista de extermínio “científico” em prol da “saúde do Reich”. Nenhum dos autores imaginou o rumo que seria dado às suas ideias. Provavelmente, não concordariam com ele. Mas foi justamente pelo fato de serem acadêmicos, e avessos a paixões ideológicas, que se tornaram perigosamente instrumentalizáveis, e os seus argumentos tiveram o peso que tiveram. Os primeiros a levar as suas ideias a sério não foram soldados, militantes e baderneiros nazistas, mas os médicos, psiquiatras e advogados responsáveis pela implementação do programa T4 dos campos de extermínio, que viam a própria atuação como benéfica para a saúde coletiva. E, num tempo em que a ciência voltou com tudo como autoridade em matéria de política, isso deveria nos servir de alerta.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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