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Flávio Gordon

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Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Consórcio STF-PT

De quantos Tagliaferros precisaremos?

eduardo tagliaferro
O perito Eduardo Tagliaferro fala à Subcomissão Especial sobre o Combate à Censura da Câmara dos Deputados, em 24 de setembro. (Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

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A nova denúncia de Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do TSE, lança mais detalhes sobre a engrenagem do regime de exceção no Brasil. São mais e mais provas documentais daquilo que qualquer observador minimamente atento já intuía sobre a presente situação nacional. Em qualquer país sério, revelações desse calibre resultariam em uma crise institucional de grandes proporções, em CPIs devastadoras e no afastamento imediato do denunciado até completa apuração dos fatos. Mas no Brasil, onde a degradação institucional é completa, o mais provável é que se busque enquadrar o denunciante em mais um inquérito-Frankenstein, acusando-o pela enésima vez de atentar contra a democracia e o Estado de Direito.

Tagliaferro afirma que Alexandre de Moraes não apenas conduziu a corte eleitoral com mão de ferro, mas a transformou num bunker ideológico, montando, em suas palavras, “um mutirão de perseguição à direita”. Antes fosse apenas retórica política do ex-colaborador e hoje inimigo. As ordens internas documentadas, os registros de monitoramento sistemático de cidadãos e os relatos de intimidação a servidores que ousaram questionar ordens vindas do topo não dão margem para dúvidas: o Estado de Direito foi definitivamente substituído por um Estado policial, a despeito de todo o latinório com que se revestem os despachos de ódio de Moraes.

A cena seria tragicômica se não fosse apenas trágica, uma vez que envolve o destino de uma grande parcela da população, vítima de um abusador serial de autoridade. Diante dos parlamentares presentes na Subcomissão de Combate à Censura da Câmara dos Deputados, em sessão presidida pelo deputado Gustavo Gayer, Tagliaferro descreveu, com o detalhamento de quem participou de tudo, o maquinário alexandrino de perseguição política. É o tipo de revelação que, em democracias minimamente funcionais, levaria a uma discussão séria sobre abuso de autoridade e limites do poder judicial. Aqui, porém, a pouca repercussão apenas atesta o clima de medo, no qual quem denuncia o abuso acaba se tornando o alvo da vez.

Os magistrados camaradas decidem quem pode falar, o que pode ser publicado, quem pode disputar eleições. Suspende-se o devido processo legal, tudo em nome da “defesa da democracia”. É o paradoxo perfeito

Não é difícil compreender a lógica do mecanismo. Carl Schmitt, o jurista alemão que se tornou um dos expoentes da filosofia nazista do direito, dizia que soberano é aquele que decide sobre a exceção. Daí que os arquitetos de regimes de força precisem criar um estado de exceção permanente, justificado por conta de uma ameaça interna constante.

No Brasil, a exceção virou rotina por meio da estigmatização e ulterior criminalização do assim chamado “bolsonarismo”, rótulo flexível e ilimitadamente ampliado para caber em qualquer opositor ao regime STF-PT. Desse modo, os magistrados camaradas decidem quem pode falar, o que pode ser publicado, quem pode disputar eleições. Suspende-se o devido processo legal, tudo em nome da “defesa da democracia”. É o paradoxo perfeito: todas as bases fundamentais de uma democracia são solapadas em nome da sua proteção. O poder cujos limites são expressamente definidos na Carta Magna agiganta-se irrefreado, passando a vigiar, punir, orientar e, quando necessário, sacrificar os indivíduos indisciplinados em nome de um bem coletivo definido pelos próprios luminares de toga.

Tudo isso seria preocupante a qualquer tempo, mas revela-se inaceitável quando se lembra que o “mutirão” descrito por Tagliaferro ocorreu às vésperas das eleições presidenciais de 2022. E aqui reside o ponto crucial: se o tribunal eleitoral atuou deliberadamente para silenciar um dos lados do debate público, então a própria legitimidade do pleito fica sob suspeita. É essa percepção a origem da revolta que culminou no 8 de janeiro, e que foi instrumentalizada pelo regime justamente para a consolidação de um estado permanente de exceção. Não se trata de “golpismo”, mas de simples lógica. Uma eleição livre pressupõe igualdade de condições no acesso ao debate público. E pressupõe, por óbvio, uma arbitragem imparcial. Se uma das candidaturas foi submetida a censura e intimidação – e se isso foi feito por quem deveria apenas apitar o jogo –, o que tivemos não foi uma disputa justa, mas uma competição viciada. O vício, aliás, foi simbolizado por frases que já entraram para a história, tal como “derrotamos o bolsonarismo”, “perdeu, mané” e “missão dada é missão cumprida”.

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Diante desse quadro, a reação das demais instituições é, no mínimo, constrangedora. Com raras exceções, o Legislativo, que deveria ser o primeiro a bradar contra o esvaziamento de suas prerrogativas, permanece de joelhos, satisfeito em ser figurante no espetáculo. O Executivo, por sua vez, é o sócio majoritário da juristocracia, o principal beneficiário da perseguição à oposição, e por isso celebra cada decisão que fragiliza adversários e consolida seu domínio. Aliás, Lindbergh Farias, líder do governo na Câmara, atua hoje como uma espécie de procurador-geral paralelo, enviando aos camaradas do STF qualquer medida tentada pela oposição.

A imprensa amestrada, por sua vez, cumpre seu papel habitual de relações públicas do poder. A cada decisão censória, a cada violação de garantias individuais, a cada abuso de autoridade, repete em uníssono o mantra da “defesa da democracia”. É como se a censura fosse suplemento vitamínico, necessário para imunizar o corpo social contra os males do “discurso de ódio” propagado pelo “bolsonarismo”. Não haveria regime de exceção sem o seu departamento de propaganda disfarçado de “jornalismo profissional”.

A história oferece vários paralelos desconfortáveis. Nos anos 1930, tribunais especiais de regimes autoritários – na Itália fascista, na Alemanha nazista, na União Soviética – também se arvoraram em defensores da ordem. Suas sentenças vinham sempre acompanhadas de justificativas morais – “defesa da pátria”, “defesa do povo”, “vitória da revolução” etc. O estado de exceção era permanente. A diferença é que, hoje, a exceção se apresenta como normalidade institucional, e o arbítrio é vendido como requisito de civilização. “Recivilizar o país” – foi a desculpa de um dos nossos magistrados (com toda justiça, um dos sancionados internacionalmente por violações de direitos humanos) para justificar o abuso de autoridade cometido por ele e por seus colegas.

A toga deixou de ser símbolo de imparcialidade para virar uniforme de campanha. A lei, que deveria ser escudo contra o arbítrio, converteu-se em espada para cortar cabeças dissidentes

A denúncia de Tagliaferro apenas cristaliza em documento aquilo que já era intuição coletiva. A toga deixou de ser símbolo de imparcialidade para virar uniforme de campanha. A lei, que deveria ser escudo contra o arbítrio, converteu-se em espada para cortar cabeças dissidentes. E a democracia, outrora valor em si, virou slogan na boca de seus carrascos.

O futuro desse arranjo é previsível. Todo poder que se exerce sem freios tende a radicalizar-se. Hoje censura-se para “proteger as instituições”. Amanhã censurar-se-á para “garantir a paz social”. Depois, para “prevenir o caos”. Até que não reste nada a censurar, exceto o silêncio cúmplice da sociedade que aceitou, passivamente, cada passo nesse caminho para a servidão.

O Brasil vive, portanto, um momento decisivo. Ou se reconhece que a democracia não pode sobreviver sob tutela de uma casta que decide quem é ou não cidadão, quem é ou não titular de direitos fundamentais, ou continuaremos aplaudindo a encenação melancólica de um regime que já não existe, exceto como peça de propaganda. Se a democracia virou teatro, resta que toda peça tem hora para acabar. Resta saber de quantos Tagliaferros precisaremos para rasgar o véu.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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