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O ministro do STF Luís Roberto Barroso.
“Nós somos muito poderosos. Nós somos a democracia. Nós é que somos os poderes do bem”, afirmou Luís Roberto Barroso durante evento na Universidade Harvard.| Foto: Carlos Alves Moura/SCO/STF

“Tal sociedade, já infectada pelo estado de histeria, considera qualquer percepção de uma verdade desconfortável como um sinal de grosseria ou falta de educação.” (Andrew Lobaczewski, Ponerologia: psicopatas no poder)

“O bárbaro é, em primeiro lugar, aquele que crê na existência da barbárie.” (Claude Lévi-Strauss, Raça e História)

Relendo dia desses Desenvolvimento e Cultura: o problema do estetismo no Brasil, ensaio clássico de Mário Vieira de Mello, deparei-me novamente com esta profunda caracterização da moralidade brasileira tal como vivenciada, sobremaneira, por sua intelligentsia:

“Nas análises que sucederão falaremos do brasileiro como de um tipo humano que, sem pertencer à classe dos intelectuais, está suficientemente próximo dessa classe para se deixar influenciar por ideias de cultura. De uma maneira geral ele parece ser em nossos dias um homem que se contempla a si mesmo e que contempla os outros como se o mundo fosse um palco e como se a sua vida devesse ser destituída de sentido, caso não pudesse se constituir como um espetáculo a que assistissem um certo número de pessoas assíduas e atentas. Esse traço que se encontra certamente em outros povos que como nós tenham sido sujeitos à influência do estetismo, se apresenta naturalmente na nossa psicologia em graus extremamente variados, indo de um simples desejo de não deixar passar desapercebido um mérito, uma ação, uma qualidade ou uma intenção louvável, às manifestações excessivas de um exibicionismo sem pudor ou de um cabotinismo indiferente às exigências mais rudimentares da modéstia”.

Para a imprensa estetista, os modos de cowboy do homem laranja importavam mais – e ofendiam mais – do que suas ações concretas

Sem louvar uma idealizada “bondade natural” brasileira – como fizeram tantos e tantos românticos –, mas sem, tampouco, denunciar uma não menos imaginária perversidade cultural que nos seria intrínseca, Vieira de Mello diagnostica o nosso principal calcanhar de Aquiles, a saber: a estetização da moral. Continua o diplomata:

“O brasileiro não é uma ilustração da bondade natural do homem de Rousseau, mas tampouco um representante típico da humanidade tal como a imaginou Maquiavel. A sua concepção de bondade, de generosidade, de cordialidade não é nem falsa nem sincera – é estética – isto é, consiste numa apreensão dos valores bondade, generosidade, cordialidade que não é suficientemente existencial para que esses valores se traduzam em atos verdadeiramente bons, generosos ou cordiais”.

Hoje, parece-me que, junto com a depilação a cera (o “Brazilian wax”), as quase extintas girafas amazônicas e os glúteos da intelectual gramsciana Anitta, o nosso estetismo cultural também ganhou o mundo, e sobretudo o espírito de suas classes falantes. Um exemplo muito claro desse estetismo é a avaliação midiática global sobre a figura de Donald Trump.

Por seu estilo oratório durão e algo “Old West”, por projetar uma imagem mais tradicional de masculinidade (hoje tida por “tóxica” pelos bem-pensantes ocidentais, que valorizam, ao contrário, a fluidez de gênero e o androginismo), Trump foi representado pela grande imprensa mundial como uma grande ameaça à paz no planeta. E, no entanto, justo ao contrário de seu antecessor Barack Obama (um ultrabelicista com pose e trejeitos de bom moço) e de seu sucessor Joe Biden (que parece firmemente comprometido a nos lançar numa Terceira Guerra Mundial), Trump obteve avanços inéditos no sentido de um mundo mais pacificado, como, por exemplo, no relativo sucesso com que conteve o expansionismo russo-chinês, ou na costura do inédito Acordo de Abraão, assinado entre Israel, Emirados Árabes e Bahrein. Para a imprensa, todavia, os modos de cowboy do homem laranja importavam mais – e ofendiam mais – do que suas ações concretas.

Obviamente, num país como o Brasil, cuja elite cultural é essencialmente estetista, como mostrou Vieira de Mello, aquele culto às aparências foi levado ao estado da arte. Reparem, por exemplo, na representação midiática das figuras antagônicas de Jair Bolsonaro e Luís Roberto Barroso.

O primeiro, por seu vocabulário popularesco e o jeitão de “tiozão do churrasco” alheio às últimas regras da etiqueta politicamente correta – herança da cultura caipira de berço e do ethos militar adquirido –, é tido como a própria encarnação da barbárie e do mal. Já o segundo, por sua atenção obsessiva a normas de etiqueta, sua pose iluminista, e seus modos esnobes e bacharelescos (que fazem dele quase um personagem de Lima Barreto ou Machado de Assis), apresenta-se – e assim é tomado acriticamente pela imprensa – como a encarnação da democracia, do bem e da civilização. E, todavia, subjacente ao fraseado rococó de Barroso, recoberto de carmim e pó de arroz, bem como às suas recorrentes manifestações de desdém aristocrata pela “grosseria” e a “incivilidade” de la canaille (o populacho), resta um caráter autoritário e emproado, expresso em atos e palavras prenhes de desamor, vilania e indiferença moral.

No início da semana, por exemplo, o iluminista de Vassouras subiu ao palco – ambiente impróprio a juízes, mas habitat natural de estetistas, conforme Vieira de Mello – para manifestar seu desejo de impor limites à liberdade de expressão. Disse então o ministro do STF: “Há um limite a partir do qual a liberdade de expressão se transforma em um risco para a integridade das pessoas, quando não para a integridade das instituições. É nessa hora que ela precisa ser ponderada com outros valores”.

Bolsonaro, por seu vocabulário popularesco e o jeitão de “tiozão do churrasco”, é tido como a própria encarnação da barbárie e do mal. Barroso, por sua pose iluminista e seus modos esnobes e bacharelescos, é considerado a encarnação da democracia, do bem e da civilização, não importando as barbaridades que diga

Barroso tem mesmo uma ideia muito peculiar de liberdade. Por um lado, não hesita em querer “limitar”, com base em seus critérios pessoais, um tipo de liberdade tradicionalmente consagrada como direito humano fundamental e pilar das democracias liberais. Por outro, advoga para si mesmo – e talvez para seus companheiros de ideologia e visão de mundo – uma liberdade irrestrita e egocêntrica, que não hesita, essa sim, em violar a integridade das pessoas.

Foi o que fez, por exemplo, em palestra proferida no Rio de Janeiro em 3 de agosto de 2018, abordando a proposta de legalização do aborto até a 12.ª semana de gestação. A certa altura da sessão de perguntas da plateia, o ministro foi questionado sobre uma possível usurpação por parte do STF de prerrogativas do Congresso, cujo posicionamento contrário à mudança na legislação atual sobre o aborto tem correspondido ao da maioria da sociedade brasileira por ele representada. Depois de repetir um tradicional argumento abortista, segundo o qual é discutível que um feto de menos de 12 semanas de gestação possa ser considerado uma vida humana, o palestrante foi além. Cito:

Admitindo que haja vida, e, portanto, trabalhando sobre a sua premissa [dirigia-se a um interlocutor pró-vida], se você se mover, como eu me movo, por uma ética kantiana, e se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar minha liberdade individual, você perde.” (confira o trecho).

Rogo ao leitor que releia atentamente as palavras acima transcritas, ditas num tom muito elegante e civilizado, que passaria com louvor numa avaliação da Socila. O movimento retórico de Barroso começa por admitir, em hipótese, a premissa do interlocutor, segundo a qual o aborto implica a eliminação de uma vida humana. Ocorre que, mesmo após aceitar a premissa – algo que, em geral, até os abortistas mais ferrenhos têm algum pudor em fazer –, Barroso estabelece uma hierarquia de princípios na qual a sua própria liberdade individual está no topo, erigida em valor absoluto e superior a qualquer outro. O fato de que, logicamente, uma pessoa precise antes estar viva para gozar de liberdade plena não parece em nada abalar-lhe a convicção de que o direito à liberdade – a sua própria liberdade – é mais fundamental que o direito à vida.

Mas o mais perturbador da cena é a estranha sensação de que, embora num primeiro plano esteja se dirigindo à interlocutora da plateia, Barroso pareça mirar através desta, falando diretamente ao feto, receptor elíptico e silencioso da declaração: “Se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual” – afirma desavergonhadamente o civilizadíssimo jurisconsulto, como que olhando diretamente nos olhos da futura vítima –, “você perde”. Perde o quê? A vida, bem entendido.

Desafio o leitor – mesmo aquele que, porventura, nutra profunda ojeriza por Bolsonaro – a encontrar nas falas do atual presidente da República, “grosseiras” e “incivilizadas” o quanto sejam, algo equivalente à monstruosidade moral contida no elegantérrimo discurso abortista de Barroso. E concluo que, se a distinção entre barbárie e civilização deve ser encontrada nessa atenção histérica à estética das palavras e dos modos, e não na moralidade ou imoralidade intrínseca à substância por eles manifesta, resta afirmar com Montaigne que, indubitavelmente, mais vale ser bárbaro que civilizado, grosseiro que elegante, rude que sofisticado. Pois não há pompa e circunstância capazes de conter o fel transbordante de uma alma corrompida, nem o mal que se oculta sob belas aparências.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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