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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Julgamento de Bolsonaro

A vingança da geração reprimida

Julgamento de bolsonaro carmen lucia
A ministra Cármen Lúcia, no julgamento que tornou Jair Bolsonaro réu por golpe de Estado. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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“A gente inaugurou um estilo de vida e, de certa forma, ficou preso nele.” (Maria Clara Mariani, citada por Zuenir Ventura em 1968: O ano que não terminou)

“Todo mundo sabe o que foram os anos de chumbo, mas nunca vimos um capitão, um general, um militar e um torturador no banco dos réus” – disse a jornalista global Eliane Cantanhêde sobre a aceitação da denúncia contra Jair Bolsonaro no STF. No julgamento-espetáculo promovido pelo consórcio STF-PT-Globo, estiveram presentes, sentados na primeira fila, Ivo Herzog – filho de Vladimir Herzog (jornalista morto durante o regime militar, em 1975) – e Hildegard Angel, jornalista e filha de Zuzu Angel (mãe de Stuart Angel, desaparecido durante a ditadura militar). De onde estavam, puderam ouvir claramente a manifestação de Cármen Lúcia. Referindo-se a um regime de exceção que acabou há mais de 40 anos, e não ao regime de exceção que ela hoje integra, disse ela:

“Ditadura mata. Ditadura vive da morte, não apenas da sociedade, não apenas da democracia, mas de seres humanos de carne e osso, que são torturados, mutilados, assassinados toda vez que contrariar o interesse daquele que detém o poder, para seu próprio interesse. Não é para o bem público, para o benefício de todos.”

Em vez de um julgamento, o que começamos a ver no último dia 25 foi um ato de vingança da “geração reprimida”, cujos protagonistas tiveram o imaginário formado pelo regime militar

Não, Cármen Lúcia não estava se referindo ao Clezão, morto na Papuda por negligência (ou quiçá sadismo) dos próceres do regime. Também não estava se referindo às ditaduras comunistas sanguinárias que, nos anos 1960, grande parte da esquerda brasileira queria importar para o Brasil. Não. Ela se referia ao regime militar. Era o regime militar que, citando uma historiadora de esquerda, ela trazia de volta ao palco. Era o regime militar – encarnado na figura de Jair Bolsonaro – que ela tinha a satisfação de condenar. Afinal, vingança é um prato que se come frio, não é mesmo?

Portanto, em vez de um julgamento, o que começamos a ver no último dia 25 foi um claro ato político de vingança da “geração reprimida” – versão brasileira da geração baby boomers –, cujos protagonistas, a maioria nascida entre 1944 e 1958 (como a própria Cantanhêde, como Luís Roberto Barroso, como Cármen Lúcia etc.), entraram na juventude e na socialização extrafamiliar entre os anos de 1960 e 1982, tendo o imaginário formado pelo regime militar no Brasil, um evento culturalmente construído como determinante em suas trajetórias pessoais e políticas. E são representantes dessa cultura geracional, com sua memória compartilhada e seu ethos comum, que, hoje, ocupam as principais posições de poder no Brasil.

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” – o verso de Chico Buarque captura bem o espírito dessa geração, o grito abafado, envolto num lirismo ressentido e autolisonjeiro, de uma turma que, ao conquistar enfim o poder, não hesitou em usá-lo para se vingar dos fantasmas do passado, todos aqueles que, pretensamente, lhe subtraíram o poder devido e brecaram momentaneamente as suas utopias juvenis. A subida dessa geração ao poder marca a formação da Nova República brasileira, a partir de quando a política nacional virou o espaço de uma catarse compartilhada, um movimento de ab-reação coletiva cujos ecos se fazem sentir, por exemplo, no show trial destinado a esmagar Bolsonaro e seu círculo de aliados.

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Não obstante haver a maior parte dos bem-pensantes de esquerda abandonado o comunismo, a verdade é que o comunismo nunca os abandonou. E a derrota desse sonho (ou pesadelo, para os povos e nações submetidos ao seu jugo) gerou uma ferida mal cicatrizada, e reaberta de tempos em tempos. Como nunca fizeram a sua crítica e autocrítica de maneira plenamente consciente – ao contrário do que se passou no Leste Europeu e em parte da Europa ocidental –, os esquerdistas brasileiros da geração de 1968 recalcaram o seu comunismo e abafaram o seu senso de derrota histórica nos confins do subconsciente. Como argumenta o historiador Alan Charles Kors num artigo sobre a nova esquerda euroamericana:

“Garotos que, nos anos 1960, tinham retratos de Mao e Che pendurados nos muros da escola – o equivalente moral de possuir retratos de Hitler, Goebbels ou Horst Wessel – hoje ensinam nossas crianças sobre a superioridade moral de sua geração política.”

O senso de superioridade moral dos boomers tupiniquins, os revolucionários reprimidos ávidos por uma vingança histórica contra todos os obstáculos erguidos aos seus projetos de poder, explica muito do que assistimos no Brasil de nossos dias.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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