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Flávio Gordon

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Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

"Admiradores do regime chinês"

Gilmar Mendes: tiete de ditador

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Gilmar Mendes na sessão de 11 de junho do STF, quando falou da "admiração pelo regime chinês". (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

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Como todos testemunharam, durante o julgamento sobre o Marco Civil da Internet ocorrido na terça-feira, dia 11, Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, pronunciou uma frase que revela, sem disfarces, o alinhamento ideológico e a visão autoritária que hoje permeiam a mais alta (e cada vez mais baixa) corte do país: “Nós todos somos admiradores do regime chinês, né, do Xi Jinping”.

Dita com a naturalidade de um comentário sobre vinho do Porto ou bacalhau à lagareiro, a declaração expõe o flagrante desprezo da corte pelo conceito de liberdade que deveria ser pedra angular da democracia e da própria Constituição que o STF deveria guardar. O que chamou atenção, contudo, não foi apenas o conteúdo da frase, mas o silêncio das vozes no entorno. Excetuando-se uma correção técnica feita por Barroso – que lembrou ser de Deng Xiaoping, e não de Xi Jinping, a autoria da frase sobre gatos e ratos –, não houve nenhum sinal de constrangimento ou repúdio. O silêncio dos demais membros do tribunal exprimiu uma eloquente cumplicidade.

Agora, imaginemos se um deputado conservador tivesse dito: “Todos aqui admiramos o regime russo de Putin”. As manchetes decerto já estariam prontas: “ameaça à democracia”, “apologia ao autoritarismo”, “discurso de ódio” etc. O STF abriria um inquérito de ofício, a imprensa convocaria especialistas, o presidente da OAB gravaria vídeos com cara de velório. Mas, quando Gilmar Mendes exalta a tirania chinesa, o comentário é tratado como inofensivo, quando não celebrado como exemplo de pragmatismo político.

A frase de Gilmar Mendes é a síntese de um novo paradigma jurídico, no qual os fins justificam os meios, a Constituição é um detalhe e a liberdade, um capricho “burguês” a ser regulado por decreto

Para justificar o indecoroso elogio ao regime ditatorial chinês, Gilmar invocou a conhecida máxima de Deng: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”. A frase, retirada do contexto histórico da transição chinesa do maoísmo à abertura econômica, foi usada como metáfora para um argumento tipicamente maquiavélico: o de que, no combate à desinformação (leia-se, às vozes dissidentes), não importa o método, desde que o fim seja atingido.

Nesse sentido, de fato, a cor do gato é irrelevante. Pode ser estatal, privado, misto, proveniente de big techs estrangeiras assediadas judicialmente pelos censores estatais, ou de agências reguladoras ideologizadas. O que importa é que o aparato censor cace os “ratos” – as informações e opiniões que o regime STF-PT considera subversivas. Na lógica do ministro, a liberdade de expressão é uma variável tática. A legalidade é secundária e o maquiavelismo vira dogma. E, sob esse novo dogma, tudo se justifica: censura prévia, suspensão de contas, criminalização da opinião, vigilância digital. O modelo chinês é o exemplo a ser seguido.

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A fala de Gilmar revela, com crueza rara, o que há muito se tornou visível aos olhos atentos: a transformação do STF em um órgão de gestão ideológica. De guardião da Constituição, o Supremo passou a tutor do cidadão. De garantidor da liberdade, tornou-se agente disciplinador do discurso. De árbitro isento, virou parte ativa na reengenharia social. E a jurisprudência, instrumento de remodelação (ou “edição”, segundo o jargão dos juristocratas) cultural.

Gilmar Mendes, mestre da ambiguidade e do juridiquês performático, apenas deu voz ao Zeitgeist: o fascínio das elites brasileiras pela eficácia autoritária, desde que dirigida contra seus adversários ideológicos. Um tribunal que elogia Xi Jinping em plenário é o mesmo que fecha os olhos para a corrupção e o narcotráfico, investiga cidadãos por crime de opinião e transforma memes em ameaças à democracia. Aqueles que celebram essa nova ordem, é bom lembrar, não são estúpidos – são cínicos. Sabem exatamente o que estão fazendo. E fazem com método, convicção e, como se viu, recorrendo às tecnologias de ponta em termos de imposição de consenso e homogeneização das consciências.

O Brasil assiste, em câmera lenta, à construção de uma nova ordem. Nela, a liberdade é tolerada apenas enquanto conveniente. Quando se torna incômoda, é sacrificada em nome do “interesse coletivo”. A censura é rebatizada de “moderação de conteúdo”. O arbítrio se disfarça de jurisprudência. O silêncio do meio jurídico, das organizações de imprensa e dos presidentes das duas casas legislativas é a trilha sonora da rendição institucional. Portanto, a frase de Gilmar não é apenas um devaneio individual – ele usou a primeira pessoa do plural, afinal de contas. A frase é a síntese de um novo paradigma jurídico, no qual os fins justificam os meios, a Constituição é um detalhe e a liberdade, um capricho “burguês” a ser regulado por decreto.

No Brasil, o gato – seja ele estatal ou privado, togado ou algorítmico – já está solto, e caçando com eficiência desde, ao menos, 2019

Eis um dado histórico invariável: quando o arbítrio se institucionaliza, não se apresenta mais como opressão, mas como “responsabilidade”. A censura vira “proteção contra o discurso de ódio”. A perseguição ideológica se mascara de “defesa da democracia”. E os novos comissários do povo posam de legalistas.

A metáfora do gato que caça o rato, mal pinçada da ditadura chinesa romantizada por Gilmar Mendes, não é apenas uma curiosidade semântica. É um programa de poder. No Brasil, o gato – seja ele estatal ou privado, togado ou algorítmico – já está solto, e caçando com eficiência desde, ao menos, 2019. O STF já se posiciona como o grande moderador da esfera pública. O TSE já se comporta como filtro ideológico. A imprensa consorciada já se presta ao papel de Ministério da Verdade. E a “sociedade civil organizada” – ou seja, os aparelhos privados de hegemonia controlados pelo regime, segundo o conceito gramsciano – vigia e denuncia a divergência. Nada mais comunista. Nada mais chinês.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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