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Israelenses erguem faixas durante a manifestação exigindo a remoção imediata da sede da UNRWA em Jerusalém.
Israelenses erguem faixas durante a manifestação exigindo a remoção imediata da sede da UNRWA em Jerusalém.| Foto: EFE/EPA/Atef Safadi

Quando tive notícia de que funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês) são ligados ao Hamas e participaram dos atentados terroristas de 7 de outubro, perguntei a mim mesmo: “Por que não estou surpreso?”. Ato contínuo, respondi mentalmente: “Porque conheço o histórico de antissemitismo da ONU”. Com efeito, o notório viés anti-Israel da organização internacional, capitaneado em suas fileiras por representantes do mundo islâmico e do anticolonialismo terceiro-mundista, responde parte da pergunta.

Há, todavia, um outro aspecto da questão, menos relacionado com o ódio a Israel em si mesmo (articulado, sobretudo, pelo lobby islâmico dentro das organizações internacionais) do que com a representação da nação judaica como uma espécie de protótipo ancestral da noção mesma de Estado-nação soberano. Essa representação – que inspirou, entre outros, os Pais Fundadores americanos em sua conceituação de soberania e insuflou com uma religiosidade algo messiânica o espírito da independência dos EUA – atrai para Israel um tipo diferente de hostilidade, que ultrapassa o ódio experimentado por seus inimigos no Oriente Médio e companheiros de viagem mundo afora. Seus atores não são antissemitas bárbaros, vocais e espetaculosos, mas membros de uma elite ocidental cosmopolita, com pose de humanista, fala mansa e gestos requintados.

Em contraste com o antijudaísmo clássico, de tipo racista, esse outro tipo de hostilidade anti-Israel se caracteriza por um antissemitismo mais discreto e filosófico, disfarçado de antissionismo, e manifesto, sobretudo, pelos herdeiros contemporâneos dos impérios (egípcio, assírio, babilônico etc.) em meio aos quais – e contra os quais – os judeus se constituíram como um povo. Como bem mostra Yoram Hazony, esse antigo imperialismo assume hoje a forma de globalismo, e os seus apologistas veem o Estado de Israel – bem como os EUA, seu rebento histórico e aliado político – como uma pedra no sapato no projeto de “governança global” (um eufemismo recorrente para governo mundial). Os globalistas não rejeitam Israel por ser um Estado nacional judeu, mas por ser um Estado nacional soberano, dotado de meios eficazes de autodefesa. Seu problema, portanto, não é tanto o do judaísmo – como era para os nazistas e ainda é para os islamonazistas –, mas o da soberania.

Os globalistas não rejeitam Israel por ser um Estado nacional judeu, mas por ser um Estado nacional soberano, dotado de meios eficazes de autodefesa

Essa diferença de motivos para odiar Israel não significa que globalistas e antissemitas clássicos não cooperem entre si em vista do objetivo comum, atuando nas mais variadas frentes de ataque político e desmoralização lançados contra a nação judaica, que deve ser ou aniquilada, ou destituída de sua soberania. Essa cooperação vem de longa data, tendo como um marco histórico importante a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada, realizada pela ONU na cidade sul-africana de Durban, no ano de 2001. A conferência de Durban representou um microcosmo da política transnacional do futuro, colocando as forças da “governança global” contra o Estado-nação democrático liberal, e especialmente contra Israel. Convém, portanto, relembrá-la.

Antes de mais nada, é interessante observar o tipo de rede política formada na ocasião, muito ilustrativo do modus operandi que viria a ser consagrado pelos globalistas dali em diante. Em 27 de outubro de 2000, num contexto de preparação para a conferência de Durban, cerca de 50 ativistas americanos de direitos humanos e direitos civis haviam elaborado um documento intitulado “Um chamado à ação para as Nações Unidas”, que foi enviado a Mary Robinson, então alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O documento declarava que “embora a segregação tenha acabado, as pessoas de cor nos Estados Unidos da América continuam a enfrentar padrões de discriminação racial e preconceito generalizados e persistentes que ameaçam sua subsistência, sua liberdade e até suas vidas”. Além disso, dizia que “a discriminação racial nos Estados Unidos é particularmente perniciosa” e “endêmica dentro do sistema de Justiça criminal dos EUA”. O documento acusava o governo dos Estados Unidos da América de não cumprir suas obrigações de eliminar a discriminação em todas as suas formas, apesar da ratificação dos EUA, no ano de 1994, da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

Em conferência à imprensa, a representante de uma das ONGs responsáveis pela confecção do documento justificou o apelo às Nações Unidas por uma questão de “frustração” diante da dificuldade de avançar a sua agenda pelos procedimentos regulares da democracia americana. Presente à conferência de imprensa, a comissária da ONU Mary Robinson disse sentir-se honrada por receber aquele “apelo à ação” por parte das ONGs. A relação entre as ONGs americanas (junto com seus financiadores) e a comissária Robinson era de apoio e simbiose. Integrando uma densa rede em prol da “governança global”, esses atores buscavam impor “normas globais de direitos humanos” sobre os Estados soberanos democráticos. Além das ONGs listadas no “Chamado à Ação”, outros grupos, incluindo a Anistia Internacional EUA e o Comitê de Serviço de Amigos Americanos, também estiveram envolvidos. Importantes fundações americanas financiaram as iniciativas das ONGs relacionadas a Durban. Um apoio financeiro particularmente generoso para a atividade das ONGs veio da Fundação Ford, da Fundação MacArthur, da Fundação Charles Stewart Mott e da Fundação Rockefeller. Compreender essa vasta rede globalista é fundamental para interpretar o significado da conferência de Durban da ONU em 2001.

Grosso modo, havia três grupos de atores políticos na conferência de Durban, cada qual com seus objetivos específicos. O primeiro grupo, liderado por autoridades democráticas ocidentais, acreditou ingenuamente que a conferência pudesse promover a tolerância e combater a discriminação racial. O segundo grupo consistia na aliança dos governos dos países integrantes do bloco político-ideológico assim chamado de “Sul Global”, terceiro-mundista ou, outrora, “não alinhado” (ou seja, supostamente independente dos polos em oposição na Guerra Fria, EUA e URSS). Uma ala desse bloco, composta por nações africanas lideradas pela África do Sul, buscava reparação do Ocidente, inclusive financeira, por injustiças passadas como o colonialismo, a escravidão e a discriminação racial. Uma outra ala, composta por nações islâmicas unidas na Organização da Conferência Islâmica, tentou usar o fórum da ONU para deslegitimar Israel como um Estado racista de “apartheid”.

O terceiro grupo – que mais nos interessa aqui – era composto pelas forças pró- “governança global”, principalmente a liderança da ONU, as ONGs e as fundações filantrópicas. Seu objetivo principal era expandir as “normas globais de direitos humanos”, e estabelecer uma autoridade global sobre Estados soberanos em temas políticos controversos. Em Durban, esse grupo defendeu toda a agenda progressista transnacional: apoio às cotas étnicas, raciais e de gênero no emprego; direitos linguísticos das minorias, com a imposição do bilinguismo e do multilinguismo; uma educação multicultural; adestramento para a consciência de gênero, conforme definido por militantes e acadêmicos politicamente radicais; restrições ao “discurso de ódio”; direitos migratórios, incluindo políticas de tolerância e normalização da imigração ilegal; igualdade de resultados com base em etnia, raça e gênero. Ademais, num recado velado aos EUA, os globalistas instaram as nações que ratificaram as convenções da ONU sobre direitos civis e políticos e sobre raça a retirarem todas as reservas aos tratados.

Globalistas e antissemitas clássicos têm uma cooperação de longa data em vista do objetivo comum, atuando nas mais variadas frentes de ataque político e desmoralização lançados contra a nação judaica, que deve ser ou aniquilada, ou destituída de sua soberania

Da perspectiva dos globalistas e de seus aliados anti-Israel e antiamericanos, a conferência de Durban foi um sucesso. Virtualmente todos os itens da agenda da “governança global” foram contemplados na declaração final e no plano de ação. Ademais, a estratégia de demonização de Israel e dos EUA – que abandonaram a conferência – saiu-se vitoriosa. O ataque a Israel foi particularmente virulento no ecossistema de Durban. Na época, o congressista americano Tom Lantos, um judeu sobrevivente do Holocausto, escreveu uma longa reportagem sobre o fim infame da conferência, com o título “O Debacle de Durban: um testemunho ocular sobre a Conferência Mundial da ONU contra o Racismo”.

De acordo com Lantos, na reunião preparatória regional asiática em Teerã, a Organização da Conferência Islâmica (composta por mais de 50 nações muçulmanas) tomou a iniciativa e lançou uma campanha para deslegitimar Israel. Antes mesmo do início do evento, autoridades iranianas proibiram a entrada de portadores de passaportes israelenses e representantes de ONGs judaicas. A organizadora da conferência, a comissária da ONU Mary Robinson, não tomou nenhuma medida contra a proibição do Irã de conceder vistos a cidadãos israelenses. Em Teerã, o texto final declarou que Israel implementara “um novo tipo de apartheid, um crime contra a humanidade” na Cisjordânia e em Gaza, e denunciava o “surgimento de movimentos racistas e violentos baseados em ideias racistas e discriminatórias, em particular, o movimento sionista, que se baseia na superioridade racial”.

Junto com o então secretário de Estado Colin Powell, Tom Lantos alertou a comissária Mary Robinson que a linguagem virulenta contra Israel era um obstáculo para a participação dos Estados Unidos em Durban. Paralelamente, a fim de “salvar a conferência”, a delegação americana mostrava-se disposta a acatar a linguagem proposta sobre a escravidão, e trabalhou diligentemente por esse compromisso. A resposta de Robinson foi um discurso aos delegados na reunião preparatória final em Genebra, no qual a comissária da ONU fazia uma equivalência moral entre, de um lado, “as feridas históricas do antissemitismo e do Holocausto” e, de outro, “as feridas acumuladas do deslocamento e ocupação militar dos palestinos sob autoridade israelense”. Nas palavras de Lantos: “Em vez de condenar a tentativa islâmica de usurpar a conferência, ela a legitimou”.

Fora do principal centro de conferências em Durban, foi realizado um Fórum de ONGs para, supostamente, representar a voz da sociedade civil global (no jargão onuseiro) junto à Conferência Mundial contra o Racismo. A declaração oficial que surgiu do Fórum de ONGs condenou Israel como um “Estado racista de apartheid”, declarando-o culpado de “genocídio” e exigindo o fim dos “crimes racistas” contra os palestinos. Segundo relatou o jornalista Edwin Black ao periódico judaico americano Jewish Daily Forward (JDF), havia no Fórum de ONGs a presença de “cartazes exibindo ícones nazistas e caricaturas judaicas, marchas de protesto anti-Israel, vaias organizadas, panfletos incendiários e cartoons anti-judaicos, além de agitação antiamericana”.

Figuras importantes dentro do partido da governança global financiaram as ONGs palestinas e do Oriente Médio que lideraram o ataque a Israel em Durban. Algumas organizações judaicas ficaram chocadas ao descobrir que a Fundação Ford, a União Europeia e alguns países europeus (incluindo Suécia, Noruega e Holanda) estavam financiando ONGs palestinas radicais envolvidas na campanha antissemita. Em sua reportagem para o JDF, Black informou que “os funcionários da Ford desempenharam um papel ativo na promoção da conferência de Durban e forneceram financiamento para várias das principais organizações anti-Israel no evento”. A Ford era um grande financiador da Rede de ONGs Palestinas (uma coalizão de 90 ONGs) que promoveu uma resolução em Durban solicitando “à comunidade internacional que imponha uma política de isolamento completo e total de Israel como um Estado de apartheid”. O tempo parece não ter passado, não é mesmo?

Seguiremos daí no próximo artigo, onde pretendo aprofundar o exame do problema globalista com Israel.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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