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O filósofo Immanuel Kant, cujo “A Paz Perpétua” lançou as bases teóricas do globalismo moderno.
O filósofo Immanuel Kant, cujo “A Paz Perpétua” lançou as bases teóricas do globalismo moderno.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“Não sabemos exatamente o que acontece no vale da morte nazista, ou quantos judeus já foram massacrados... Não sabemos se a vitória da democracia, liberdade e justiça não encontrará a Europa como um vasto cemitério judeu onde os ossos do nosso povo estão espalhados... Somos o único povo no mundo cujo sangue, como nação, é permitido ser derramado... Apenas nossas crianças, nossas mulheres... e nossos idosos são separados para um tratamento especial, para serem enterrados vivos em covas cavadas por eles, para serem cremados em crematórios, para serem estrangulados e mortos por metralhadoras... por apenas um pecado... Porque os judeus não têm posição política, nenhum exército judeu, nenhuma independência judaica e nenhuma pátria... Dê-nos o direito de lutar e morrer como judeus... Exigimos o direito a uma pátria e à independência. O que aconteceu conosco na Polônia, o que Deus nos livre, acontecerá conosco no futuro, todas as nossas vítimas inocentes, todas as dezenas de milhares, centenas de milhares e talvez milhões... são os sacrifícios de um povo sem pátria... Exigimos uma pátria e exigimos independência.” (David Ben-Gurion, novembro de 1942)

“Uma paz universal e perpétua, é de se temer, está no catálogo de eventos que nunca existirão a não ser na imaginação de filósofos visionários ou no peito de entusiastas benevolentes.” (James Madison, 4.º presidente americano)

Em A Virtude do Nacionalismo, Yoram Hazony argumenta que, em 1947, por ocasião da fundação do Estado de Israel, o mundo passava por uma drástica mudança de paradigma no que diz respeito à ideia de Estado nacional. Israel fundou-se sobre uma teoria política que reconhecia a liberdade das nações de afirmar e defender sua independência em face de projetos imperialistas. Esse ideal moderno de Estado-nação consolidara-se no curso da árdua luta de nações como a Inglaterra, a Holanda e a França para se libertarem das garras do império dos Habsburgos da Alemanha e da Espanha (o Sacro Império Romano-Germânico). Foi no espírito dessa jornada anti-imperialista – meses depois, por exemplo, de a Índia conquistar sua independência – que nasceu Israel.

Se quiséramos traduzir o conflito entre globalismo e soberanismo na história intelectual europeia, seria uma disputa entre o time de Immanuel Kant, o capitão dos globalistas, e o time de Johann Gottfried von Herder, o capitão dos soberanistas

Mas em 1947, no imediato segundo pós-guerra, aquele paradigma havia adquirido má fama.  Na época, muito embora Adolf Hitler e seus seguidores se vissem como continuadores do império (Reich) romano-germânico, o nazismo acabou virando símbolo dos vícios e maldições do nacionalismo, sendo representado como o fruto podre do Estado nacional alemão. A ideia de que as nações pudessem se armar, bem como decidir por si próprias quando usar o seu arsenal militar, tornara-se sinônimo de barbarismo e inumanidade. Nas palavras de Hazony:

“Em seu esforço para estabelecer uma União Europeia, as nações da Europa estabeleceram um novo paradigma no qual o Estado nacional independente não é mais visto como detentor da chave para o bem-estar da humanidade. Pelo contrário, o Estado nacional independente agora é visto por muitas figuras políticas e intelectuais na Europa como uma fonte de mal incalculável, enquanto o império multinacional – que Mill apontara como a epítome do despotismo – é repetidamente citado com ternura, como um modelo para uma humanidade pós-nacional.”

Como apontamos no artigo da semana passada, o confronto entre a utopia do governo mundial e o desejo pelo autogoverno soberano não é coisa recente. Sua recorrência ao longo da história humana advém do fato de suscitar respostas distintas e irreconciliáveis a questões perenes de filosofia política: Quem governa? De quem é a autoridade para a tomada de decisões? Qual o fundamento dessa autoridade? Os partidários do globalismo sonham com uma autoridade supranacional que garanta a paz e resolva os assim chamados “problemas globais”. Os partidários do soberanismo aspiram à independência e procuram frear o poder de impérios supranacionais e multiculturais. Se quiséramos traduzir o conflito nos termos da história intelectual europeia, poderíamos personalizá-lo na forma de uma disputa entre o time de Immanuel Kant, o capitão dos globalistas, e o time de Johann Gottfried von Herder, o capitão dos soberanistas.

Em 1795, Kant publicou Paz Perpétua: um esboço filosófico, ensaio que pode ser considerado o documento fundacional do globalismo contemporâneo. Nele, o filósofo de Königsberg deu início à mudança de paradigma descrita acima, lançando um famoso ataque ao ideal do Estado nacional, comparando a autodeterminação nacional à liberdade sem lei dos selvagens. Em suas palavras:

“Olhamos com profundo desprezo para a maneira como os selvagens se agarram à sua liberdade sem lei, preferindo envolver-se em lutas incessantes do que se submeter a restrições legais... Consideramos isso como uma barbárie, uma grosseria, uma degradação brutal da humanidade. Poderíamos, assim, esperar que os povos civilizados, cada um unido em si mesmo como um [Estado] nacional, se apressassem em abandonar uma condição tão degradante o mais rápido possível. Mas, em vez disso, cada Estado vê sua própria majestade... precisamente em não ter de se submeter a qualquer restrição legal externa, e a glória de seu governante consiste em seu poder de ordenar que milhares de pessoas se imolem.”

Noutro trecho do ensaio, Kant evoca o pânico da guerra como pretexto para a instauração de um governo mundial:

“Só existe uma maneira racional pela qual os Estados coexistentes podem emergir da condição sem lei da guerra pura... Eles devem renunciar à sua liberdade selvagem e sem lei, adaptar-se às leis coercivas públicas, e assim formar um Estado internacional, que necessariamente continuaria a crescer até abranger todos os povos da Terra.”

Na visão globalista de matriz kantiana, entidades autônomas autogovernadas, como os Estados-nação democráticos liberais, devem ser subordinadas a uma autoridade supranacional

A ideia de Kant era a criação de uma federação global de Estados, uma República Mundial na qual todas as nações estariam sujeitas a uma única constituição. Em Paz Perpétua, ele argumenta que o estabelecimento de um Estado internacional ou imperial é o único ditame possível da razão. Aqueles que não concordam em subordinar seus interesses nacionais às diretrizes do Estado imperial são tidos por obstáculos à marcha histórica da humanidade em direção ao reinado da razão. A insistência na liberdade nacional equivaleria a estender o egoísmo do indivíduo para a escala dos países, abdicando do direito internacional tanto quanto um egoísta violento abdica da moral. Kant concebe, assim, a ideia de uma Liga das Nações, embrião da moderna ONU:

“Em uma liga das nações, até o menor Estado poderia esperar segurança e justiça, não por seu próprio poder e por seus próprios decretos, mas apenas os desta grande liga das nações, de um poder unido agindo de acordo com decisões tomadas sob as leis de sua vontade unida. Por mais fantástica que essa ideia possa parecer... o resultado necessário da privação a que cada homem é levado por seus semelhantes é forçar os Estados a tomar a mesma decisão (por mais difícil que seja para eles) que o homem selvagem também foi relutantemente forçado a tomar, ou seja, a renunciar à sua liberdade brutal e buscar tranquilidade e segurança sob uma constituição [global] legal.”

Fica claro que, na visão globalista de matriz kantiana, há um deslocamento da ideia tradicional de internacional, no sentido de relações entre Estados soberanos, para a de transnacional, no sentido de relações que se elevam acima dos Estados-nação soberanos. Dessa perspectiva, entidades autônomas autogovernadas, como os Estados-nação democráticos liberais, devem ser subordinadas a uma autoridade supranacional. Afinal, já não serão elas as tomadoras finais de decisão, e, portanto, já não poderão ser tidas por nações soberanas no sentido tradicional, definido celebremente por Abraham Lincoln: “uma comunidade política sem um superior político”.

Em oposição ao ideário kantiano, bem como ao dos philosophes iluministas na outra margem do Reno, Herder brandiu a ideia particularista de Kultur contra as pretensões da universalista Civilization. A noção de Kultur – ou, preferivelmente, de Kulturen, no plural – enfatizava a diferença, tomando as culturas humanas como expressões singulares e irredutíveis, passíveis de ser compreendidas apenas em seus próprios termos, e com base no desenvolvimento histórico particular a cada uma. Contra o imperialismo cultural iluminista, um dos pais do romantismo exasperava-se: “Os príncipes falam francês, e logo todos seguirão seu exemplo; e então, vejam, a bem-aventurança raia no horizonte! A idade de ouro, quando todo o mundo falará uma só língua, uma linguagem universal! Um só rebanho, e um só pastor! Mas onde estão vocês, culturas nacionais?”

Numa passagem de Ideias para uma filosofia da história da humanidade (1784-1791), Herder sintetizou o espírito da causa soberanista contra a artificialidade das invenções globalistas, a exemplo da União Europeia. Em suas palavras:

“O Estado mais natural é, portanto, uma nação, uma família ampliada com um caráter nacional único. Isso é mantido por séculos e se desenvolve de forma mais natural quando os líderes vêm do povo... Nada, portanto, é mais manifestamente contrário aos propósitos do governo político do que o alargamento antinatural dos Estados, a mistura selvagem de vários povos e nacionalidades sob um só cetro. Um cetro humano é muito fraco e fino para que partes tão incongruentes sejam enxertadas nele. Esses Estados são apenas construções improvisadas, máquinas frágeis... e suas partes componentes estão conectadas por artifícios mecânicos em vez de laços de sentimento.... Seria apenas a maldição do destino que condenaria à imortalidade essas uniões forçadas, essas monstruosidades sem vida. Mas a história mostra suficientemente que os instrumentos do orgulho humano são feitos de barro, e como todo barro, eles se dissolverão ou se desfarão em pedaços.”

Seja nas tentativas mais violentas de destruição da civilização ocidental – como as promovidas pelo radicalismo islâmico –, seja nos ataques globalistas às soberanias nacionais, Israel está sempre na linha de frente, na condição de alvo primordial

Discípulos de Kant, os globalistas inspiram-se em exemplos históricos célebres, dentre eles o império egípcio, o império de Alexandre, o Grande, o Império Romano, os impérios de Carlos Magno e dos Habsburgos, o império de Napoleão, o Império Britânico e assim por diante. As instituições contemporâneas representativas dessa ideia de império são, sobretudo, a União Europeia e todas as organizações e instituições que compõem o sistema ONU. Por sua vez, os soberanistas, herdeiros intelectuais de Herder, buscam referências na Israel bíblica, nas pólis ateniense e em outras cidades-Estado gregas, na República romana, nas cidades-Estado italianas e nas cidades livres do norte da Europa durante a Idade Média e a Renascença, na Inglaterra elisabetana e na República dos Pais Fundadores dos EUA. Hoje, seus representantes são os Estados-nação liberais e democráticos em geral, e particularmente o Estado de Israel e os EUA, países dotados de um visceral senso de autonomia.

Daí que, como comecei a argumentar no artigo anterior, as disputas em relação a Israel compõem uma das frentes contemporâneas do conflito entre globalistas e soberanistas, entre o time de Kant e o time de Herder. Seja nas tentativas mais violentas de destruição da civilização ocidental – como as promovidas pelo radicalismo islâmico –, seja nos ataques globalistas às soberanias nacionais, Israel está sempre na linha de frente, na condição de alvo primordial. Enquanto, por exemplo, o Hamas e o governo iraniano se empenham na campanha genocida pela aniquilação do Estado de Israel, os globalistas se empenham numa vasta campanha mundial de desmoralização, retratando como infames, bárbaras e desumanas as tentativas israelenses de reagir, sobreviver e manter a sua soberania (isso, é claro, quando não estão contribuindo ativamente com os primeiros).

Com efeito, o que vimos acontecer no pós-7 de outubro obedeceu a um velho padrão, observado inúmeras vezes – na Segunda Intifada, na operação em Jenin no ano de 2002, na Segunda Guerra do Líbano em 2006, na guerra em Gaza de 2008-2009, no incidente da assim chamada “flotilha da liberdade” em 2010 etc. As etapas do movimento anti-Israel são sempre as mesmas: primeiro, os terroristas atacam; depois, Israel responde aos ataques lançando mão de sua superioridade militar; em seguida, os governantes globais se juntam ao bloco radical islamista e/ou terceiro-mundista para condenar duramente a resposta de Israel, em resoluções da ONU, relatórios de ONGs, processos contra autoridades israelenses e pedidos de desinvestimento, boicotes e sanções.

Portanto, diferentemente dos terroristas islâmicos (mas, muitas vezes, de maneira complementar), os globalistas travam uma guerra política não violenta – posto que persistente e insidiosa – contra a soberania democrática da nação israelense. Os herdeiros políticos de Kant não buscam propriamente a destruição de Israel, mas querem subordinar o país à autoridade global. Do ponto de vista israelense, o assédio globalista constitui um tipo diferente de ameaça existencial, voltada não contra a existência material de Israel, mas contra a sua existência política como um Estado soberano e, como corolário, contra a própria ideia de soberania Estado-nacional.

Com efeito, Israel tem sido um alvo frequente das organizações internacionais, que o acusam de ser um proxy dos Estados Unidos e dos Estados soberanos de maneira geral. Precedentes em relação às leis da guerra, ao direito internacional sobre direitos humanos, à jurisdição universal e temas afins costumam ser abertos primeiramente contra Israel, para em seguida mirarem os Estados Unidos e outras democracias liberais. Da perspectiva transnacionalista, o nacionalismo israelense é um obstáculo à nova ordem e à “paz perpétua” kantiana. Por outro lado, os judeus sabem que, diante dos reiterados ataques de extermínio de que seu país é vítima, a tal “comunidade internacional” não oferece nada além de condolências. Da perspectiva de Israel, há toda uma história milenar ensinando esta clara lição: só há “paz perpétua” no cemitério.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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