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Foto: Ricardo Stuckert/AFP
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“Que é isso, Polo, estás rindo? Será essa uma nova modalidade de refutação, rir de alguém que afirma alguma coisa, sem opor-lhe qualquer argumento?”
(Platão, Górgias)

No Brasil de hoje, uma das ferramentas retóricas mais usadas pelos detentores do monopólio da palavra, mediante a qual buscam manter o debate público restrito ao perímetro delimitado por sua própria ignorância, é o argumento da risadinha. Diante de toda opinião tida por “polêmica” – e até mesmo os fatos mais patentes parecem “polêmicos” a uma classe falante tão provinciana quanto a nossa –, apela-se ao riso de deboche como forma de, cobrindo o interlocutor com o manto do ridículo, e, pois, tentando isolá-lo socialmente, se esquivar do confronto com os fatos por ele apresentados.

Um dos temas nos quais o argumento da risadinha tem aparecido com frequência é o famigerado combate às fake news, do qual já tratei aqui. É batata! A cada vez, por exemplo, que se aponta o viés de esquerda de redes sociais como Twitter e Facebook, parcialidade que hoje resulta numa inaceitável política de censura a opiniões liberais e conservadoras, vemos surgir, em resposta, as famigeradas risadinhas (“kkkk”, “uahuahua”, “hahaha”), por vezes acompanhadas do seguinte comentário: “Ah, então você vai dizer agora que as duas empresas-símbolo do capitalismo americano são socialistas?”

E, claro está, de nada adianta convencer o engraçadinho de que o socialismo há muito não se contrapõe (se é que alguma vez já o fez) a uma economia de mercado, sobretudo quando megaempresários usam o livre mercado contra si próprio, a fim de garantir o monopólio conquistado em seu ramo de atuação, articulando-se com o poder estatal para barrar a entrada de novos concorrentes. Tampouco adianta exibir diante do risonho interlocutor as falas de Mark Zuckerberg (CEO do Facebook) e Jack Dorsey (CEO do Twitter) admitindo o viés de esquerda em suas empresas. As risadinhas não cessam, mas, antes, se intensificam, numa tentativa desesperada de disfarçar o que, em verdade, soa mais como urros de dor impotente à vista dos fatos.

Outro tema recente em que sobraram risadinhas de escárnio foi a tal da Ursal (União das Repúblicas Socialistas da América Latina), trazida à baila pelo candidato à Presidência da República Cabo Daciolo. Aproveitando-se de certa excentricidade do mensageiro, e apegando-se ao nome curioso (cuja proximidade fonética com a palavra “urso” gerou um sem-número de memes cômicos), jornalistas e militantes de esquerda trataram de ironizar (e, com isso, encobrir) a existência da coisa nomeada. Nesse caso, o procedimento não foi inocente, traindo um objetivo malicioso e calculado: apagar as pistas deixadas pela imprensa em seu inexplicável esforço de ocultação (ou, ao menos, de minimização) do projeto de integração latino-americana sob bases socialistas, projeto amplamente documentado em fontes primárias e depoimentos de seus idealizadores.

“Como não conhecíamos o plano Ursal? Como não havíamos pensado antes em um projeto tão ambicioso para a América Latina?” – perguntam ironicamente os autores de uma matéria sobre a fala do Cabo Daciolo, como se a própria ignorância a respeito do objeto em questão pudesse servir de prova definitiva de sua inexistência. Ora, a resposta à pergunta debochada não poderia ser outra: não conheciam por incompetência profissional. E, se conheciam e ainda assim não informaram o público a respeito, tanto pior. Não há argumento da risadinha que possa mascarar esse fato.

O que é a Ursal, afinal de contas, senão um outro nome para a Pátria Grande, o projeto de unificação continental conduzido por partidos e movimentos de esquerda da América Latina e do Caribe, idealizado e executado pelos integrantes do Foro de São Paulo, organismo transnacional fundado por Lula e Fidel Castro em 1990? Alguém em sã consciência duvidaria da existência desse projeto? Ora, mesmo o jornal O Globo, usualmente discreto e tolerante para com os planos totalitários do PT e sua rede continental de aliados, abriu espaço para que o jornalista Ruy Fabiano tratasse do assunto. Em artigo de 2015, intitulado “A Pátria Grande”, Fabiano explica: “O problema da união latino-americana cogitada pelo PT, e pelas organizações da esquerda continental, reunidas no Foro de São Paulo, é tentar impô-la sem debates e sob o tacão ideológico. A Pátria Grande terá que ser socialista – ou bolivariana – e seu projeto objetiva, com a urgência possível, unificar forças armadas, moeda e territórios. Nada menos. Para definir sua institucionalização, criou-se a Unasul, cuja última reunião de cúpula, no Equador, em dezembro, aprovou três propostas complicadíssimas: uma Escola Sul-Americana de Defesa – ‘um centro articulado de altos estudos para formação de civis e militares’ –, abertura do espaço aéreo dentro da Unasul, além de passaporte comum, sem distinguir nacionalidades. São questões que tangenciam a soberania e pressupõem longas e complexas tratativas, acompanhadas de perto pelas sociedades dos países abrangidos. Nada disso, porém, ocorreu: nem na sociedade, nem no Congresso, nem em parte alguma”.

Que esse projeto continental de poder deveria permanecer obscuro e sigiloso, confessou-o o próprio Lula, em discurso proferido em 2 de julho de 2005, por ocasião do aniversário de 15 anos do Foro de São Paulo. Depois de mencionar a participação decisiva do Foro no referendo de 2004 que consagrou Chávez como presidente, o ex-presidente operário (hoje presidente-presidiário) afirmava: “Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política. Foi assim que surgiu a nossa convicção de que era preciso fazer com que a integração da América Latina deixasse de ser um discurso feito por todos aqueles que, em algum momento, se candidataram a alguma coisa, para se tornar uma política concreta e real de ação dos governantes. Foi assim que nós assistimos à evolução política no nosso continente”.

Em julho de 2012, no vídeo de encerramento do 18.º encontro do Foro de São Paulo, Lula celebrava as conquistas do Foro e prestava apoio à reeleição de Hugo Chávez: “Em 1990, quando criamos o Foro de São Paulo, nenhum de nós imaginava que, em apenas duas décadas, chegaríamos onde chegamos. Naquela época, a esquerda só estava no poder em Cuba. Hoje, governamos  um grande número de países [note-se o uso da primeira pessoa do plural, sugerindo que o Foro é quem governa os países, não os seus presidentes formalmente eleitos]”.

Em 2013, discursando na abertura da edição daquele ano do encontro, Lula também era claro quanto ao significado da entidade: “Eu quero debitar parte da chegada da esquerda ao poder na América Latina a essa cosita chamada Foro de São Paulo”. No programa Provocações, apresentado por Antonio Abujamra, ao ser perguntado se poderia ter previsto o espantoso avanço da esquerda na América Latina, José Dirceu respondia: “Prever não. Mas nós já lutávamos e trabalhávamos por isso. Inclusive porque nós criamos o Foro de São Paulo, que lutava para isso”. Em 1997, durante a propaganda eleitoral, o então presidente do PT já admitira que o Foro havia sido “uma resposta direta e afirmativa da esquerda latino-americana à crise do socialismo, à queda do Muro de Berlim, à desintegração da União Soviética”.

Em 2007, no vídeo preparatório de seu 3.º Congresso Nacional, o PT proclamava o objetivo de “extinguir o capitalismo e iniciar a construção do socialismo” na América Latina, caracterizando o Foro de São Paulo como “um espaço de articulação estratégica”, dedicado à consolidação de “um novo internacionalismo”. No mesmo ano, na 13.ª edição do Foro em El Salvador, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) saudavam a todos os presentes com as seguintes palavras: “Em 1990 já se via vir abaixo o campo socialista, todas as suas estruturas fraquejavam como castelo de cartas, os inimigos do socialismo festejavam a mais não poder, se cunhavam teorias como a do fim da história, muitos revolucionários no mundo observavam atônitos e sem conhecer o que havia falhado para que ocorresse semelhante catástrofe. A utopia se dissipava, a desesperança se apoderou de muitíssimos dirigentes que haviam dedicado toda a sua vida à luta por conquistar um mundo melhor, idealizando-o com o modelo de socialismo desenvolvido da União Soviética (…) É nesse preciso momento que o PT lança a formidável proposta de criar o Foro de São Paulo, trincheira onde nós pudéssemos encontrar os revolucionários de diferentes tendências, de diferentes manifestações de luta e de partidos no governo, concretamente o caso cubano. Essa iniciativa, que encontrou rápida acolhida, foi uma tábua de salvação e uma esperança de que tudo não estava perdido. Quanta razão havia, transcorreram 16 anos e o panorama político é hoje totalmente diferente”.

Além dos registros acima descritos, poderiam ser citadas centenas de outras provas inequívocas da existência do projeto de unificação latino-americana sob a égide do socialismo – do projeto da “Ursal”, em suma. Mas de nada adiantaria, porque, mais uma vez, para ignorantes vaidosos, bem como para desinformantes profissionais, a realidade não sobrevive à força do argumento da risadinha. Como, certa feita, resumiu o filósofo Olavo de Carvalho de maneira definitiva: “O Brasil tornou-se o único país do mundo onde a ignorância é fonte de autoridade intelectual”.

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