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“Supressão da família! Até os mais radicais indignam-se com essa perigosa proposta dos comunistas” (Karl Marx e Friedrich Engels)

“As mulheres são uma população escravizada – a safra que nós colhemos são crianças, os campos em que nós trabalhamos são casas” (Andrea Dworkin)

No programa Morning Show de ontem, 12 de março, na Jovem Pan, os integrantes da bancada debateram o caso da DJ Pietra Bertolazzi, atual diretora do curso de estética, beleza e bem-estar do Fundo Social SP, onde coordena um programa de capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade. Por fazer críticas ao feminismo, questionando a manipulação estatística e retórica dos dados sobre o assim chamado feminicídio, Pietra passou a ser alvo de uma das hoje costumeiras campanhas de linchamento virtual promovidas por justiceiros sociais de esquerda (incluindo aí, como sempre, jornalistas da grande imprensa). Um abaixo-assinado no Avaaz pede (minto: exige) que ela seja demitida do cargo.

Ao descrever o caso, a comentarista Paula Carvalho repudiou as críticas ao feminismo, alegando que a sua identificação com a esquerda seria um equívoco por parte de Pietra. “Deveríamos estar todas juntas, mulheres” – disse, apresentando ao público um conceito particular de feminismo, inteiramente descolado da realidade histórica concreta do movimento, e compreendido como mero sinônimo de “defesa das mulheres”, caso em que só um insensível poderia criticá-lo.

Sempre fazendo um contraponto solitário ao ultraprogressismo de seus colegas de bancada, o comentarista Caio Copolla saiu em defesa de Pietra, lembrando a importância de que fosse resguardada a sua liberdade de crítica. Mal começara a articular o raciocínio, todavia, e foi logo interrompido por Paula: “Não, eu acho que as mulheres não devem se criticar, Caio”. Lembrando que o assunto era criticar o feminismo, não as mulheres, Caio ainda tentou argumentar, mas, àquela altura, a racionalidade tinha ido para as cucuias, e o vírus da febre lacradora já contaminara o estúdio.

Imaginando que a sua condição feminina bastasse para legitimá-la como porta-voz do feminismo, Paula voltou à carga, afanando na mão grande o “lugar de fala” de Pietra, e recusando-lhe o direito à autodefinição político-ideológica: “Mas o feminismo… Ela [Pietra] também é feminista. Você acabou de lembrar de coisas que ela faz [o trabalho social com as mulheres em situação de vulnerabilidade] que são muito feministas. Dividir o feminismo entre pautas de esquerda e direita é um erro para todas as mulheres… Não divida as mulheres, Pietra. A gente tinha que estar juntas nas brigas, e não dividindo as mulheres nas redes sociais”.

Nesse momento, o comentarista de nome “Fefito” – que, assim como Paula e o apresentador Edgar Piccoli, também segue a linha do desvario lacrador – complementou, trêmulo de indignação: “É que há um erro de interpretação quando se fala em feminicídio, muita gente não entende que é um tipo específico de assassinato, um crime voltado para o gênero, para uma questão de gênero”. O comentarista de nome “Fefito” só ignorou que, ao comparar as mortes violentas de homens e mulheres no Brasil, tanto Pietra Bertolazzi quanto Caio Coppolla falavam precisamente desse mesmo tipo específico de assassinato: o crime passional cometido pelo cônjuge ou parceiro da vítima. Não é apenas em números gerais que homens morrem mais que mulheres, mas também quando se faz o recorte específico de violência doméstica. Foi esse o argumento inicial de Pietra, completamente desconsiderado pelo afoito comentarista… Mas deixemos “Fefito” para lá, e voltemos à questão mais relevante, que diz respeito à interpretação de Paula Carvalho sobre o feminismo.

Enquanto movimento político, o feminismo tem história e sentidos próprios, que independem do conceito subjetivo e sentimental que dele faça a moça da bancada do Morning Show. O que entendemos hoje pelo termo tem relação direta com o ideário da assim chamada “segunda onda do feminismo”, movimento político surgido nos anos 1960, que, ao contrário da “primeira onda” surgida em meados do século 19 – caracterizada pela demanda por “direitos iguais”, em especial o direito ao voto –, incorporaram o modelo marxista da luta de classes ao seu discurso, passando a lutar por uma “libertação” total da mulher em relação à opressão masculina, e fazendo referência especial à sua sexualidade e vida familiar. Enquanto o primeiro movimento de mulheres (as sufragistas) era individualista e reformista, o feminismo da “segunda onda” era coletivista e revolucionário, tendo nascido como um ramo da Nova Esquerda, cujo projeto de destruição dos fundamentos culturais e espirituais da civilização ocidental é conhecido.

O que muita gente não sabe (e a senhorita Paula Carvalho menos ainda, pois estudar dá mais trabalho que lacrar) é que os temas principais dessa “segunda onda” já estavam prefigurados no movimento feminino surgido no seio da revolução bolchevique de 1917, e cujos inimigos centrais eram os mesmos das feministas contemporâneas: a família burguesa e a instituição do casamento – compreendidas, desde Marx e Engels, como esteios do capitalismo. O bolchevismo tinha como projeto central a aniquilação de todo resíduo de vida privada, pois nenhum espaço da existência devia escapar ao controle político do Estado. Nesse sentido, a família era tida por ameaça reacionária ao projeto comunista de uma nova sociedade. Como escreveu o dramaturgo bolchevique Anatoli Lunatcharski em 1927: “A assim chamada esfera da vida privada não pode nos escapar, porque é precisamente aí que a meta final da Revolução deverá ser alcançada”.

Em seu livro Sussurros: a vida privada na Rússia de Stalin, o historiador Orlando Figes, um dos maiores estudiosos da Revolução Russa, explica: “A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a ‘família burguesa’ era socialmente danosa: autocentrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito; estimulava o egoísmo e o consumismo, oprimindo mulheres e crianças. Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse à medida que a Rússia soviética se tornasse um sistema socialista pleno, no qual o Estado assumisse a responsabilidade por todas as funções domésticas básicas, fornecendo berçários, lavanderias e refeitórios em centros públicos e conjuntos habitacionais. Liberadas do trabalho doméstico, as mulheres estariam livres para integrar a força de trabalho em pé de igualdade com os homens. O casamento patriarcal, com sua moral sexual submissa, deveria morrer e ser substituído – assim acreditavam os radicais – por ‘uniões de amor livre’. Os bolcheviques viam a família como o maior obstáculo à socialização das crianças”.

Com efeito, a revolução envolveu desde o início novos experimentos de vida social, especialmente no que dizia respeito ao papel da mulher na nova sociedade comunista. Ali, então, a bandeira da “liberação da mulher” já aparecia como item fundamental da agenda revolucionária. Algumas das mais destacadas mulheres comunistas da época – Alexandra Kollontai, Inessa Armand, Angélica Balabanoff, Konkordia Samóilova, entre outras –, idealizaram um sistema de refeitórios e lavanderias comunitários, bem como creches e berçários, destinados a libertar a mulher dos grilhões da vida doméstica. “Mulheres da Rússia, joguem fora panelas e frigideiras” – dizia um cartaz soviético da época. A família burguesa devia ser gradualmente dissolvida por meio de uma reforma liberal das leis sobre casamento, divórcio e aborto, cujo objetivo declarado era desembaraçar as camaradas da tirania marital.

Em 1919, criou-se o departamento feminino da secretaria do Comitê Central (Zhenotdel). Kollontai, que passou a chefiá-lo no ano seguinte, era apologista de uma revolução sexual que emancipasse todo e gênero feminino, preconizando o “amor livre” e a “amizade erótica” entre homens e mulheres, desobrigando-os do fardo da monogamia e do matrimônio. Na província de Saratov, chegou-se a baixar um decreto de Nacionalização da Mulher, que extinguia o casamento e dava aos homens o direito de se saciarem à vontade em bordéis licenciados. Em Vladimir, funcionários do Zhenotdel criaram um Comitê do Amor Livre, determinando que as mulheres com mais de 18 anos se tornassem “propriedade do Estado” e passassem a estar disponíveis para “procriar no interesse do regime”.

Como se vê, já então o feminismo significava um tipo muito curioso de “libertação”: libertando-se do marido e dos filhos, a mulher tornava-se serva do partido e do movimento revolucionário. Como disse Lilina Zinoviev, precursora do ensino soviético: “Devemos resgatar os infantes da influência nociva da vida familiar. Devemos racionalizá-los. Desde os primeiros dias de sua existência, os pequenos devem ser postos sob a ascendência de escolas comunistas para aprenderem o ABC do comunismo… Obrigar as mães a entregar seus filhos ao Estado soviético – eis nossa tarefa”.

Para Paula Carvalho, como vimos, o feminismo não passa de uma virtuosa e inquestionável defesa das mulheres. Ocorre que, já na Rússia revolucionária, o contraste entre os interesses das mulheres de carne e osso e o das ideólogas bolcheviques se fazia sentir dramaticamente. Como observa Figes noutra de suas obras, A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891-1924): “As próprias mulheres suspeitavam da ideia de liberação sexual… Muitas temiam que as creches comunitárias sumissem com seus filhos, ou os transferissem à tutela do Estado; queixavam-se da lei do divórcio, de 1918, argumentando que isso permitia aos homens fugir de suas responsabilidades junto às esposas e à prole. As estatísticas lhes davam razão. No início dos anos 1920, a taxa de divórcio na Rússia tornara-se a mais alta de toda a Europa – 26 vezes superior à do Velho Continente burguês. As operárias desaprovavam a sexualidade liberal que Kollontai apregoava, considerando-a (não sem motivo) como uma licença para que os homens se comportassem mal com as mulheres. Elas ainda conferiam mais valor à antiquada noção de casamento, muito arraigada entre as famílias camponesas, cujos integrantes tinham funções distintas e papéis sexuais definidos”.

O feminismo surgiu, portanto, como um discurso ideológico que, a pretexto de defesa das mulheres, tinha por objetivo instrumentalizá-las em função do projeto bolchevique de dissolução da família e da vida doméstica. Este, aliás, tem sido o objetivo número um de toda e qualquer utopia revolucionária. Falando do projeto revolucionário nazista, por exemplo, o sociólogo Karl Mannheim descreveu-o com precisão: “Hitler inventou um novo método a que se pode dar o nome de estratégia do grupo nazista. O ponto capital da estratégia psicológica de Hitler é jamais encarar o indivíduo como pessoa, mas sempre como membro de um grupo social…  Hitler sabia instintivamente que enquanto as pessoas se sentem abrigadas em seus próprios grupos sociais, ficam imunes à influência dele. O artifício oculto da estratégia de Hitler, por conseguinte, consiste em romper a resistência do espírito individual por meio da desorganização dos grupos aos quais esses indivíduos pertencem. Ele sabe que um homem sem laços com o grupo é como um caranguejo sem a carapaça… Assim, há duas fases principais na estratégia do grupo de Hitler: a decomposição dos grupos tradicionais da sociedade civilizada e uma rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo”.

Mannheim faz questão de ressaltar que, embora Hitler tenha introduzido adaptações particulares na técnica, ela não tinha nada de especificamente nazista, tendo sido pioneiramente idealizada pelo bolchevismo: “São diversos os métodos de que [Hitler] dispõe para lidar com a família, a Igreja, os partidos políticos e as nações. Os elementos dessa técnica, ele os aprendeu com os comunistas”.

O feminismo é um dos elementos da técnica. Ele surge com o objetivo declarado de desenraizar as mulheres de seu ambiente familiar, atomizando-as e transformando-as em criaturas exclusivamente políticas (daí a necessidade de politização de sua sexualidade e biologia). Não foi a Pietra, e muito menos o Caio, que “dividiram” as mulheres. O feminismo nunca teve por objeto todas as mulheres indistintamente, mas somente as que endossam sem questionar – e que, portanto, podem ser instrumentalizadas para defender – as pautas político-ideológicas da extrema-esquerda: o ataque às instituições da família e do casamento, e, sobretudo, à própria experiência feminina da maternidade. Para compreender isso, basta ler o que escreveram e disseram algumas das feministas de maior destaque no mundo.

Como Simone de Beauvoir, por exemplo: “Enquanto a família, o mito da família, e o mito da maternidade, e o instinto maternal, não forem destruídos, as mulheres continuarão sendo oprimidas”. Ou Linda Gordon: “A família nuclear deve ser destruída, e as pessoas devem encontrar formas melhores de viver em sociedade… Seja qual for o seu sentido último, a dissolução das famílias é um processo objetivamente revolucionário. As famílias sustentaram a opressão ao separar as pessoas em unidades pequenas, isoladas e incapazes de se organizar em função de interesses maiores”. Ou Robin Morgan: “Não podemos destruir as desigualdades entre homens e mulheres até que tenhamos destruído a instituição do casamento”. Ou Shulamith Firestone: “Assim, libertar as mulheres de sua biologia significaria ameaçar a unidade social, que está organizada em torno da reprodução biológica e da sujeição das mulheres ao seu destino biológico, a família. Nossa segunda exigência surgirá também como uma contestação básica à família, desta vez vista como uma unidade econômica… Com isso atacamos a família numa frente dupla, contestando aquilo em torno de que ela está organizada: a reprodução das espécies pelas mulheres, e sua consequência, a dependência física das mulheres e das crianças. Eliminar estas condições já seria suficiente para destruir a família, que produz a psicologia de poder, contudo, nós a destruiremos ainda mais”.

Num certo sentido, e ironicamente, o discurso da “libertação das mulheres” também esteve sempre submetido àquilo que homens revolucionários – desses que exortam as companheiras “de grelo duro” – idealizaram em seus projetos de poder. Homens como Vladimir Lenin, por exemplo, que escreveu: “Apesar de todas as leis liberais recém-aprovadas, a mulher continua a ser uma escrava doméstica, porque o mesquinho trabalho doméstico a esmaga, oprime, estupidifica e degrada, amarrando-a à cozinha e ao cuidado com as crianças… A verdadeira emancipação das mulheres, o verdadeiro comunismo, começará apenas quando tiver início uma luta de massa (liderada pelo proletariado no poder) contra essa mesquinha economia doméstica, ou quando esta for transformada em economia socialista de larga escala”.

Logo, quem critica o feminismo critica isto: a concepção da mulher como inimiga quintessencial do marido e dos filhos. Não há feminismo sem o pano de fundo ideológico da luta revolucionária contra a família, a maternidade e o “patriarcado” – um conceito popularizado e ampliado por Kate Millet, uma das expoentes da “segunda onda”, que alterou o seu sentido original (domínio de um macho adulto dentro de uma estrutura tradicional de parentesco) para que, emulando o modelo marxista proletários vs. burgueses, passasse a significar a opressão institucionalizada de todas as mulheres por todos os homens. O fato de que Paula Carvalho ignore por completo a história do movimento político do qual se diz ativista só faz dela aquilo com que sonharam os idealizadores da estratégia: uma replicadora inconsciente da retórica feminista, que imagina defender as mulheres no instante mesmo em que as acorrenta a uma ideologia desumanizante. Para Paula e demais inocentes úteis do feminismo, mulheres livres como Pietra Bertolazzi são intoleráveis, pois arriscam a servir-lhes de espelho, revelando toda a farsa existencial na qual se meteram por puro desejo de lacrar como se não houvesse amanhã…

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