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Octógono ideológico
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo/Arquivo

Uma das últimas criações da revolução cultural woke que me chamou a atenção foi a MatematiQueer, grupo de estudos de gênero e sexualidade em educação matemática que integra o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática (Pemat) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assunto ao qual, aliás, esta Gazeta do Povo já dedicou uma reportagem. Autor de um artigo sobre a “matemática opressora”, não cheguei a ficar surpreso, obviamente. Diante de mais essa bizarrice acadêmica, apenas constatei, pela enésima vez, a inocuidade dos argumentos em favor de uma administração mais eficiente e menos ideológica da educação brasileira, como se o nosso problema fosse meramente de ordem prática e gerencial. Diante de uma guerra cultural como essa em que estamos metidos, querer resolver a educação com apelos a mais racionalidade administrativa é de um total descolamento da realidade.

No terreno específico da educação, essa guerra caracteriza-se pela violenta penetração das toxinas da pedagogia crítica e socioconstrutivista na corrente sanguínea do nosso sistema educacional, infectado de patógenos ideológicos tais como Jean Piaget, Alexander Luria, Lev Vygotsky, Emília Ferreiro e Paulo Freire. Caracterizada por Alain Besançon como “a propedêutica do socialismo”, e por Isabelle Stal e Françoise Thom como “o Camboja da Cultura”, essa pedagogia consistiu numa completa redefinição do papel da educação escolar, resultado da penetração da teoria crítica e da contracultura nas políticas educacionais.

Em vez de transmitir às crianças o patrimônio intelectual e científico acumulado pelas gerações passadas, o objetivo passava a ser precisamente o oposto: desconstruir esse patrimônio, visto como fruto de opressão política. Nesse contexto, o ensino tradicional, a transmissão de conteúdos especializados particulares, passou a ser descrito pejorativamente como “conteudista”. O ensino agora deveria ser “não cognitivo” e “libertador”. Não se buscava mais a formação intelectual da criança, mas a sua formatação social e moral. O objetivo já não era criar estudantes intelectualmente preparados e autônomos, mas “cidadãos” bem-comportados e ajustados às utopias políticas dos “educadores”.

A nova pedagogia não busca mais a formação intelectual da criança, mas a sua formatação social e moral

Assim, as escolas converteram-se em laboratórios para todo tipo de modismo pedagógico. Um desses modismos pedagógicos – ou pedagogices – consiste na versão letiva da utopia socialista da “sociedade sem classes”. Trata-se de uma proposta radical de igualitarismo, não apenas nas condições de partida dos alunos, o que seria razoável, mas nos resultados mesmos. Nesse “geometrismo mórbido” (expressão utilizada por Gusdorf em sua crítica a Piaget), toda diferença de aptidão é tida por privilégio de classe; toda hierarquização de papéis (como, por exemplo, os de aluno e professor), por opressão política.

Em contraponto a toda sugestão de diferença e hierarquização, a pedagogia revolucionária propunha um nivelamento a fórceps, fazendo uma tabula rasa de onde deveria emergir o novo aluno, assim como da ditadura do proletariado emergiria o “novo homem”. Surgiu toda uma retórica romântica de culto à espontaneidade, ao “vivido”, à livre manifestação dos sentimentos. Numa sociologia à la Foucault, a escola foi igualada à caserna e ao hospital psiquiátrico, todos por sua vez equiparados à prisão, no sentido de um espaço para o controle e a “disciplinarização” dos corpos. O resultado disso foi empiricamente constado pela educadora sueca Inger Enkvist, autora de um amplo estudo comparativo sobre políticas educacionais ao redor do mundo: num período que vai do fim do século passado até os dias de hoje, os países, estados ou cidades que adotaram a pedagogia crítica tiveram uma queda drástica no nível de aprendizado dos alunos.

Repito, portanto: imaginar que nossos problemas educacionais decorrem apenas de déficit de gestão é chutar para fora do estádio. O diagnóstico errado parte da premissa de que todas as forças políticas que disputam o controle da política educacional têm o mesmo objetivo, diferindo exclusivamente no tocante aos meios. Partilhada por muitos liberais e conservadores, trata-se de uma crença ingênua na universalidade da razão. A má administração responde apenas por uma parte da calamidade educacional brasileira. A outra parte – a maior parte – resulta de um projeto político deliberado que consiste em usar a educação como meio para a manipulação psicológica necessária à revolução política.

A noção de que todos os problemas resultam de um domínio técnico ainda insuficiente é um dos resquícios de uma tradição intelectual positivista que, no Brasil, se recusa a abandonar as mentalidades “bem pensantes”. A característica central dessa tradição consiste na proposta de que os fenômenos sociais e políticos sejam compreendidos mediante os métodos das ciências naturais. Trata-se de um esforço de submeter o objeto de estudo ao método, o que termina por descaracterizá-lo.

Assim, desde a “física social” de Augusto Comte, há uma forte tendência a encarar os seres humanos como objetos físicos movidos e determinados por forças externas, numa típica confusão positivista entre causalidade e intencionalidade. Um corpo se move devido ao choque com outro, e a isso chamamos causalidade. Mas, obviamente, os seres humanos somos mais que apenas corpos reagindo a outros corpos. Somos também aquilo que se convencionou chamar de agentes. Além de simplesmente transmitirmos movimento, nós também o originamos, e é a isso que chamamos de intencionalidade. É por isso que, como propôs o antipositivista Wilhelm Dilthey, enquanto as ciências naturais explicam (erklären) os fenômenos que estuda, as ciências humanas os compreendem (verstehen). Vem daí a clássica oposição entre Geissenswissenchaften (“ciências do espírito”) e Naturwissenchaften (“ciências da natureza”).

Mas o próprio positivismo faz parte de um movimento intelectual mais geral, que marcou a Europa da virada do século 18 para o 19, e que se caracteriza por um verdadeiro encanto pelas ciências naturais, especialmente graças à revolução científica do século 17. Nessa época, tivemos a transformação de Isaac Newton em verdadeiro ídolo pop, e do mecanicismo, em filosofia de vida. Quase ninguém entendida os seus escritos, é claro, mas todos falavam dele, e extraíam implicações filosóficas, místicas e morais de sua ciência. Como mostra Carl Becker em A Cidade Celeste dos Filósofos do Século 18, era menos importante que Newton tivesse descoberto a natureza da luz do que o fato de que o tenha feito brincando com um prisma. Era como se a natureza tivesse se tornado mais íntima dos homens, que agora tinham a sensação de poder tocá-la e manipulá-la.

A má administração responde apenas por uma parte da calamidade educacional brasileira. A outra parte resulta de um projeto político deliberado que consiste em usar a educação como meio para a manipulação psicológica necessária à revolução política

A consequência no terreno das humanidades foi o surgimento da crença na possibilidade de encontrar “leis históricas” tão necessárias e regulares quanto as leis naturais. A essa crença damos o nome de progressismo, filosofia da ciência caracterizada pela ideia teleológica de que a história é unilinear, dotada de um sentido pré-definido para o qual toda a humanidade caminha necessariamente. Decorrem dessa crença toda sorte de filosofia tripartite da história, começando com os iluministas Condorcet e Turgot, entre outros, passando pela lei dos três estados de Comte (teológico, metafísico e positivo), e chegando aos esquemas da antropologia evolucionista, a exemplo da divisão entre as fases de selvageria, barbárie e civilização proposta pelo antropólogo americano Henry Lewis Morgan.

Nesse modelo, o último estágio é geralmente entendido como o fim da história, uma época de racionalidade e ciência, em que o pensamento irracional, religioso ou mágico, terá sido extirpado da mente humana. É claro que essas pretensas “leis históricas” nada têm a ver com as leis naturais, porque, enquanto estas últimas podem ser, até certo ponto, testadas experimentalmente, as primeiras são puramente especulativas. Na qualidade de ser histórico ele mesmo, obviamente, nenhum ser humano tem meios de experimentar o fim da história. A pretensão de poder fazê-lo equivale à de um personagem de romance que tentasse saltar do livro e, de fora, na posição do autor, contemplar todo o enredo. Em certo sentido, essas filosofias modernas da história são uma versão secularizada do milenarismo medieval, com sua pretensão de poder adivinhar a data precisa do Juízo Final.

Em Comte, esse último é o estado chamado de positivo ou científico. Dele advém a proposta de uma sociedade inteiramente administrada pela técnica. Nessa etapa da evolução histórica, creem os positivistas, a política se tornará dispensável, porque todos os homens passarão a compreender a realidade da mesma maneira, ou seja, racional e objetivamente. A política (ação de uma vontade subjetiva contra outra) será substituída pela técnica (ação de um sujeito sobre um objeto); a intencionalidade, pela causalidade.

Em Marx e Engels, esse cenário está descrito no Anti-Dühring, no trecho em que Friedrich Engels anuncia a utopia do fim do Estado, que se seguiria à tomada do poder pelos proletários: “Em todos os domínios, a interferência estatal nas relações sociais torna-se supérflua, e acaba por morrer de inanição; o governo das pessoas é substituído pela administração das coisas”.

Ao fim e ao cabo, é essa a ilusão progressista que, mesmo para alguns conservadores e liberais, costuma permear o debate sobre como deveria ser conduzida a educação pátria. Reduz-se a educação a um problema gerencial, quase mecânico, no qual a disputa política e o embate ideológico não têm lugar. Como se aos responsáveis por políticas educacionais coubesse apenas a administração logística dos recursos: distribuição de livros didáticos, material escolar, construção de escolas, elaboração de provas, contratação de professores etc.

Mas o que está em jogo, em paralelo, e talvez antes mesmo de tudo isso, é o próprio conceito de educação que se pretende adotar. Trata-se de um conflito de visões de mundo. Pois o que temos agora, sem dúvida, não é um conceito de educação com o qual a maioria da sociedade e a maior parte dos pais estariam de acordo. Se queremos uma educação que propicie capacidades cognitivas, intelectuais e científicas aos nossos estudantes – e não uma educação que os veja como argila maleável ao toque das ideias de uma vanguarda pedagógica revolucionária –, é preciso travar a guerra cultural e se sujar naquilo que muitos positivistas convictos ou enrustidos chamam de “parquinho ideológico”, mas que, em referência ao ringue de MMA, eu prefiro chamar de octógono ideológico.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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