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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Acordo secreto

STF e Suprema Corte da China: o enlace nupcial dos iguais

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O vice-presidente do STF, Edson Fachin, recebeu magistrados do Supremo Tribunal Popular da China em abril. (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

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“Enamoraste-te, e tal gozo tomaste comigo em segredo, que meu ventre concebeu um fardo crescente.” (John Milton, Paraíso Perdido, Livro II)

“É um casamento entre duas instituições muito parecidas” – disse Herman Benjamin, presidente do STJ, na cerimônia que celebrou o acordo de cooperação entre o STF e a Suprema Corte da China, ocorrida em abril deste ano. “Os dois lados compartilham muitas semelhanças e ideias idênticas” – completou o consorte chinês He Xiaorong. E assim foi oficializado o matrimônio entre os dois tribunais revolucionários, os quais, cada qual em seu território, tentam dar ares de legalidade às respectivas ditaduras de ambos os países.

A declaração de Benjamin não foi mera retórica diplomática, mas um lapso de sinceridade. Ao contrário dos romances de amor proibido, onde um dos lados resiste, neste caso temos duas entidades que se reconhecem como almas gêmeas no exercício de uma mesma vocação: a supressão da liberdade sob pretexto de proteger a ordem.

O maior erro de análise seria imaginar o STF como vítima inocente de más influências externas, cooptado por um modelo autoritário estrangeiro. Eis aí uma indulgência pueril à qual o leitor da Gazeta não deve ceder. A verdade é que o tribunal brasileiro se aproxima da China por afinidade, não por coação. Como confessou Gilmar Mendes há algumas semanas, a admiração pelo modelo chinês é declarada, e se estende, segundo ele, aos seus colegas de corte (que, aliás, não o contestaram). Admiração por uma ditadura brutal: frase que deveria causar calafrios e vigorosa reação institucional, mas que é dita com orgulho em salões oficiais.

O tribunal brasileiro se aproxima da China por afinidade, não por coação. Como confessou Gilmar Mendes há algumas semanas, a admiração pelo modelo chinês é declarada

Quando os pseudojuízes brasileiros vão a Pequim, não o fazem, portanto, para pregar as virtudes do Estado de Direito. Vão, sim, para beber na fonte de uma vetusta tirania, para aprender com quem transformou o controle político em arte refinada, misturando censura, vigilância digital e obediência institucional. O “espírito democrático” que tanto dizem cultivar é apenas verniz para ocultar uma pulsão autoritária que encontra em Xi Jinping o seu espelho mais bem polido.

No Brasil, ouvimos desde 2019 a cantilena sobre um suposto “gabinete do ódio” criado pelo bolsonarismo. Mas, em comparação com o que se vê agora, esse gabinete imaginário não passou de um escritório de piadas de WhatsApp. O verdadeiro gabinete do ódio é o que se esconde sob as togas negras da Praça dos Três Poderes, onde ministros decidem a portas fechadas quais opiniões podem circular e quais cidadãos devem ser banidos das redes sociais.

Eis aí a coincidência essencial com a Suprema Corte da China: ambas se dedicam à tarefa de transformar a Justiça em mecanismo de perseguição política. Na China, o tribunal é mero apêndice do Partido Comunista, encarregado de sacramentar juridicamente as decisões do Politburo. No Brasil, o STF assumiu o papel de partido auxiliar do lulopetismo, transformando-se em protagonista político, polícia política e legislador ad hoc.

Ambos os modelos compartilham a mesma lógica, segundo a qual não há esfera da vida social que não possa ser submetida à vigilância. Para o chinês, o sistema de “crédito social” decide se o cidadão poderá viajar ou ter acesso a crédito. Para o brasileiro, uma decisão monocrática pode interditar plataformas inteiras, calar jornalistas, prender opositores e liquidar partidos políticos. Tudo, é claro, em nome da “defesa da democracia”.

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É sintomático que o STF e o STJ se recusem a divulgar os termos do acordo firmado com a Suprema Corte da China, em flagrante violação da Constituição e da Lei de Acesso à Informação. A obscenidade é dupla: primeiro, porque a aliança é celebrada às escondidas, como se fosse um pacto de mafiosos; segundo, porque o segredo é, por si, um ato de adesão ao modelo chinês, para quem a transparência é sempre uma ameaça.

A justificativa não poderia ser mais reveladora. Os magistrados brasileiros alegam que se trata de um documento “administrativo”, sem relevância pública. Como se uma cooperação oficial entre o Judiciário de uma suposta democracia e o tribunal de uma ditadura totalitária fosse assunto menor, equiparável à compra de papel ofício. Na prática, temos aí a prova cabal de que a corte brasileira já incorporou os métodos de seu parceiro oriental, que consistem em manipulação da linguagem, desprezo pela legalidade e arrogância de quem se vê acima da lei.

E eis aqui o ponto crucial. A ditadura chinesa não engana ninguém. Proclama abertamente seu caráter de partido único, sem pudores em esmagar a dissidência, censurar jornalistas e perseguir minorias religiosas. Já o STF brasileiro mantém um jogo mais sutil, encenando a defesa da Constituição enquanto a rasga em plenário; proclamando o Estado de Direito enquanto age como um Estado contra o direito; contraindo núpcias com uma ditadura enquanto tagarela sobre democracia.

A diferença é de método, ou de grau, jamais de essência. Ambos os sistemas compartilham o mesmo desprezo pela soberania popular, muito embora a palavra “soberania” também não saia de suas bocarras flácidas. Na China, porque o povo nunca escolhe. No Brasil, porque o povo só pode escolher até onde a toga permite. Em ambos os casos, a liberdade individual é reduzida a ornamento descartável, subordinado ao arbítrio da corte.

Na China, temos a onipotência do Partido Comunista. No Brasil, a do consórcio STF-PT. Mas o resultado é o mesmo

E não é por acaso que ministros brasileiros se sintam em casa em Pequim. Afinal, deve ser mesmo confortável dialogar com colegas que não têm de se preocupar com opinião pública, eleições, liberdade de imprensa e a presença perturbadora de “213 milhões de pequenos tiranos”. Ali, como aqui, as decisões não precisam ser justificadas pela razão ou pela lei, mas apenas pela autoridade de quem as pronuncia.

Na China, temos a onipotência do Partido Comunista. No Brasil, a do consórcio STF-PT. Mas o resultado é o mesmo: um poder que se coloca acima dos cidadãos, que decide o que pode ou não ser dito, que transforma adversários em inimigos a serem silenciados. Portanto, não há espaço para ingenuidade. O STF não é uma vítima inerte da influência chinesa, mas cúmplice e pupilo consciente. Ao aproximar-se da Suprema Corte da ditadura comunista, a corte brasileira não se corrompe, mas apenas revela, sem disfarces, aquilo em que já se transformou: um tribunal que deixou de ser guardião da Constituição para se tornar guardião dos próprios interesses políticos.

Logo, o que se passa entre as duas cortes é o que confessou o magistrado do STJ: um casamento entre iguais, selado pelo desprezo comum à liberdade e à justiça. Um enlace pago com o dinheiro dos contribuintes, celebrado em segredo, e do qual os cidadãos não são convidados a participar, exceto, talvez, como garçons e serviçais.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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